terça-feira, 29 de março de 2011

CRITICA DE "ANTES" NO ESTADO DE SÃO PAULO

O Ator Ricardo Martins em "Antes da Coisa Toda Começar. Foto: Mauro Kury


POÉTICA REFINADA DA CIA. ARMAZÉM

Fiel à sua vocação de vanguarda, novo espetáculo do grupo prima pela imaginação e pelas atuações vigorosas

29 de março de 2011

Mariangela Alves de Lima - O Estado de S.Paulo

Há quase um quarto de século, a Armazém Companhia de Teatro se inscreve na linha de frente do nosso teatro. Outros grupos paranaenses deixaram as cidades de origem à procura da dimensão metropolitana, mas esse coletivo londrinense, agora com sede no Rio, parece ter conservado ao longo de mais de duas décadas uma afinidade singular com o sentimento de exclusão que a um só tempo oprime e desafia a vida artística provinciana. Antes da Coisa Toda Começar é em grande parte uma fala poética cujo tema central é um isolamento do criador, apartado da vida e das emoções cotidianas em razão de uma sensibilidade exasperada. É um assunto que a arte de vanguarda, de modo geral, dá por sabido ao elevar ao primeiro plano os dilemas da formalização. No texto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, as personagens de três narrativas quase insubstanciais, em razão da descontinuidade, derivam de um narrador prolixo, mais antiquado do que intemporal. Estão presentes e têm uma atuação corporal vigorosa as figuras dessas histórias, no entanto a fragmentação ou incompletude de falas e ações lembra que ainda não estão prontas, que estão sendo geradas a partir de um gabinete, cuja perspectiva vai se aprofundando ao longo do espetáculo.
Definido como um espaço mental onde são desnecessários os vínculos com o realismo, o espetáculo dirigido e cenografado por Paulo Moraes começa com uma referência ao bufão da cultura flamenga e ibérica, signo da marginalidade artística que Michel de Ghelderode e Ramón del Valle-Inclán chamaram de volta ao teatro do século 20. Sentencioso, ainda recoberto pelos farrapos do passado cortesão, o bufão é também indício da melancolia que permeia a imaginação do grupo. O desejo de morte, a paixão incestuosa e a arte que se dilacera nos combates mesquinhos da vida cotidiana são pontos no desenho de uma trama tanto pictórica quanto verbal. As personagens falam, e às vezes falam demais, mas o modo como se movimentam, as atitudes corporais que as definem e as caracterizações fortes dos figurinos se sobrepõem ao peso dos diálogos. Dois amantes precariamente suspensos sobre o vazio, por exemplo, dão o recado sem precisar recorrer ao fraseado das paixões contrariadas. Do mesmo modo, um artista imobilizado por amarras dispensa considerações verbais sobre a dificuldade de manter-se fiel à vocação e íntegro no ofício.
Certamente, os anos de aperfeiçoamento técnico dos atores e dos recursos da cena permitem agora ao grupo diluir em uma atmosfera original as fontes utilizadas para a construção do espetáculo. O rock do século 20, a pintura e a dramaturgia flamengas, os sonetos renascentistas e a categoria do grotesco que recobre esse amálgama de um modo sutil não se apresentam como meras citações de uma civilização exaurida. São, antes, vivências de um repertório que o grupo estima e que a encenação domina. O sal da ironia tempera com parcimônia as representações da cantora e do ator, com moderação suficiente para distinguir essas figuras das paródias.
Para quem conhece o grupo de outras temporadas é notável a relativa serenidade corporal desse trabalho, uma vez que em espetáculos anteriores o fascínio pela interpretação acrobática dominava muitas cenas. Há coisas tão bem sabidas que não é mais preciso exibi-las. Grupos e companhias capazes de articular uma poética e refinar ao longo do tempo os meios de expressá-la acabam por definir uma assinatura, embora nem sempre o façam de modo consciente. A poética da Armazém Companhia de Teatro, reafirmada nesse espetáculo, valoriza a imagem cênica. O desgaste e o tom sépia da vegetação outonal e a pintura corroída de um salão abandonado formam o prólogo e a moldura significativa de Antes da Coisa Toda Começar.
Também os textos recolhidos ou produzidos pelos autores têm aqui o formato da retórica passadista e parecem sofrer a tentação da rima do ritmo uniforme. São pronunciamentos de escasso peso dialógico uma vez que, nesta peça, são projeções do personagem autor e, portanto, manifestações de um psiquismo livre das normas e da racionalidade. Poderiam ser pronunciados de modo mais coloquial e em tom mais baixo, sobretudo quando se referem aos estados anímicos dos artistas personagens. Enfáticas, em geral altissonantes, as locuções parecem competir com as imagens. Talvez se tornassem mais insólitas e inquietantes se a estranheza do enunciado poético fosse se revelando aos poucos sob o disfarce da entonação coloquial. 

terça-feira, 22 de março de 2011

"ANTES" RECEBE QUATRO INDICAÇÕES DA APTR

O Ator Marcelo Guerra em "Antes". Foto: Mauro Kury

É com grande alegria que recebemos a notícia de que nosso espetáculo "Antes da Coisa Toda Começar" do Armazém Companhia de Teatro foi indicado a 4 categorias do 5o. Prêmio da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR). As indicações foram nas categorias Autor (Paulo de Moraes e Mauricio Arruda Mendonça), Cenografia (Paulo de Moraes e Carla Berri), Iluminação (Maneco Quinderé) e Melhor Espetáculo.
"Antes" continua em cartaz no CCBB de São Paulo até o dia 3 de abril. Não percam!

quinta-feira, 17 de março de 2011

MEDUSA DE RAYBAN ESTREIA HOJE

Os atores Rogério Costa e Mário Sérgio Fragoso. Foto: Carllos Bozelli

Chegou a hora da verdade, rapaziada. Estrearemos hoje logo mais às 20h30m a peça "Medusa de Rayban" do grande Mario Bortolotto sob a minha direção, na Vila Cultural Cemitério de Automóveis. Apresentação de responsa. A despeito da TPE (Tensão Pré Estréia), estou super feliz com o que conseguimos realizar nesses dois meses de trabalho. Principalmente por causa desse grupo de atores e atrizes, artistas dedicados e com espírito de equipe: Adriano, Mário Sérgio, Monalisa, Nádia, Rogério e Sergio. Na verdade são gente de teatro e que sabe como as coisas devem ser levadas.  Um prazer estar com eles nessa empreitada. Sim, o teatro é um alimento e um excitante. Agora é esperar que a magia aconteça, que encontremos o público e ele dialogue com o que propusemos. Obrigado a todos e mucha Merda!


Detalhe importante: Esta montagem de "Medusa" é dedicada ao ator londrinense Clóvis Bezerra, recentemente falecido. Essa é pra você, Clovão!

terça-feira, 15 de março de 2011

MILARÉ ESCREVE SOBRE "ANTES"


Patrícia Selonk  e Marcelo Guerra em cena. Foto: Mauro Kury

ANTES DA COISA TODA COMEÇAR

Consagração da poética que caracteriza o Armazém Cia. de Teatro e lhe dá revelo na cena atual.

por Sebastião Milaré

Quando vê uma apresentação de “Antes da coisa toda começar” o espectador mais sensível, que tenha conhecimento de conceitos e propostas estéticas vigentes no teatro atual, de alguma maneira é arrastado a um universo ao mesmo tempo paradoxal e lógico. Não tem como apoio, balaustrada ou parapeito, a cultura naturalista, que se baseia no enredo e dele faz a narrativa cênica, na qual vigora a lógica aristotélica, de começo, meio e fim. Vê-se no território de imanências, onde o enredo – composto de vários enredos – o leva a abismos. Mas também espectadores alheios a tais conhecimentos, porém sensíveis, se deixam arrastar pelos atores a esses abismos, como prova o sucesso do espetáculo em suas temporadas.

Verdadeiro poema cênico no qual palavras e imagens se completam e se constroem organicamente aos olhos do público. E coroa a parceria do poeta e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça com o diretor e dramaturgo Paulo de Moraes, que vem de longa data. Remonta ao final da década de 1980, quando o grupo se formou em Londrina, PR, com o nome de Companhia Bombom. Diálogo de dois poetas que amadureceram juntos e em companhia de poetas-atores, participantes das mesmas utopias, da mesma visão de mundo transubstanciada em arte. 

Falar do enredo de “Antes da coisa toda começar” é o mesmo que falar de enredo em poesia. Quando existe, não é mais do que uma pista, sinalização da terra para pontos siderais. Existe no universo de abstrações, sítio em que a palavra o destrói e avança a páramos superiores, às regiões inefáveis do espírito. 

O co-autor e diretor Paulo de Moraes expõe a proposta temática em texto publicado no programa de mão: “O espectro de um ator abre a cena. Solitário e enclausurado em si mesmo, começa a materializar lembranças corporificando a memória. A partir daí a coisa toda começa, ou recomeça”. Explica que “dessa corporificação surgem três personagens que espelham as facetas desse espectro”. E é bem incisivo: “São aspectos de uma mesma vida, estações, fractais, alegorias, cacos de espelhos colados do jeito que deu. O espectro não é mais um, inteiro, inquebrantável. É três agora”. E a proposta realiza-se plenamente em cena. 

“Algo que nos levita/ asas & sonhares/ brilhos que espelhos flertam/ rosto que não retorna/ a certa altura da vida”. 

(“Persona” – Maurício Arruda Mendonça)

Os três personagens e suas histórias são o mesmo personagem, com a história estilhaçada em possibilidades, porvires nebulosos, sonhos e frustrações, ânsias e esvaziamentos. O Espectro do Ator (Ricardo Martins) é sim um personagem: o Ser Humano. Todo homem é um ator frustrado em busca desesperada da plenitude, que como a areia sempre lhe escapa entre os dedos. A metáfora ilumina-se em Téo (Thales Coutinho), um ator em crise. Nele o jogo de espelhos se evidencia. Ator de ofício, com sofrimento constata sua canastrice. Que Ser Humano não sofreu igualmente por sua canastrice na vida? O passo em falso; o que devia falar e não foi dito no momento apropriado; o que foi dito e se desdobrou em dissabores... São tantos os descaminhos entre o Eu e o Outro, seja no teatro ou na vida “civil”.

Dentre as muitas camadas que levam a algum entendimento dessa faceta do personagem, irradiado pelo Espectro do Ator, comandante das ações cênicas, aflora certa ironia dos dramaturgos em relação aos contraditórios conceitos do teatro de hoje. O que o personagem nega, a trama afirma. Nega, por exemplo, o inconsciente coletivo como ambiente da interpretação dramática, sendo ele mesmo um arquétipo, contracenando com outros arquétipos, produtos do inconsciente coletivo. Afirma que o objetivo do teatro é contar uma história, de certo modo contrapondo-se à mais importante tendência teatral contemporânea, que é desvendar visões exemplares do indivíduo em choque com o meio através não da biografia do sujeito, mas de situações dramáticas, como é a tessitura de “Antes da coisa toda começar”. Esta posição, no entanto, é ambígua: mediante fragmentos, situações impactantes e abstrações, continua-se no teatro a contação de histórias. Mas não à maneira de um Alexandre Dumas ou um Jorge Amado, e sim de um James Joyce ou um Guimarães Rosa, que invadem os sentidos mais profundos da palavra, reinventando os significados e construindo o mundo através de novos significantes. Estado que o espetáculo traduz, enriquecendo os sentidos da palavra com imagens, sons, projeções luminosas.

A crise do ator reverbera também na experiência de Léa (Rosana Stavis), cantora que tentou o suicídio, mas não quer morrer. O suicídio propiciou-lhe o mergulho nas situações que perfazem suas desesperanças. Reverbera, igualmente, em Zoé (Patrícia Selonk) e seu irmão (Marcelo Guerra), a unidade do Bem e do Mal separada em dois corpos. Um não pode existir sem o outro, mas quando o Bem se contamina pelo seu oposto e opta pelo Mal, não há como fugir ao precipício. 

“Nada a não ser/ destinos perdidos/ dor não se remove/ sem tortura/ a geada queima/
 a flor mais pura/ Nada a não ser/ esse repentino fenecer.” 

(“Friagem” – Maurício Arruda Mendonça)

As fronteiras entre a vida e a morte constituem a esfera em que se movem esses seres, fragmentos do Um. A própria Morte é corporificada (Simone Vianna) nas figuras de uma enfermeira e de uma puta, materializando no palco “esse repentino fenecer”. Vastas fronteiras habitadas pela solidão e pela angústia existencial, reveladas numa encenação rica de efeitos. Afaste-se desde já a idéia dos efeitos meramente impactantes ou embelezadores da narrativa. A intuição poética de Paulo de Moraes, municiada pela imaginação fértil e notável habilidade artesanal, recorre aos efeitos em termos estritos de linguagem plástica, que se harmoniza com as palavras e amplia os significados da trama, conduzindo-os às imanências através da luz, do som e dos espaços. Projeções de vídeo revestem a cena com formas e cores magníficas e, sublinhadas pela música, plasmam esses fragmentos humanos no limbo. Paredes avançam e se afastam criando espaços amplos ou ínfimos, produzindo sensações de liberdade ou claustrofobia. Luz que penetra as sombras para revelar o ser se debatendo na solidão, de repente abre-se toda, branca e fria, evocando a crueza hospitalar, umbral do Nada. 

Neste capítulo, dos diferentes meios com as respectivas técnicas convergindo à linguagem do espetáculo, acha-se um dos valores sempre presente no trabalho do Armazém Companhia de Teatro. Apresentam-se aqui profissionais de alto nível vestindo a camisa do grupo, absolutamente comprometidos com a proposta estética colocada. É o caso da música e direção musical de Ricco Viana, que não surge como realce de momentos dramáticos: estabelece contínuo diálogo com os temas do discurso poético, com os atores/personagens, com os efeitos cênicos. Ou do vídeo de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca que conduz o discurso a patamares oníricos. Ou da iluminação de Maneco Quinderé, que neste trabalho reafirma-se como um dos melhores iluminadores da nossa cena. Além dos cenários projetados e desenhados por Paulo de Moraes em parceria com Carla Berri, afastando a idéia de “decoração” ou “ambientação” em favor da poesia vertida em estrutura material, arquitetura cênica eloqüente, que também dialoga com os personagens e as situações propostas.

“Não te encanes, pensamento/ És perigo ligeiro/ És pegada do destino/ Sina de peregrino/ Sandália de passageiro.”

(“Andeiro” – Maurício Arruda Mendonça)

Mas de nada serviria tanto brilho, talento e competência dos “criadores de efeitos”, ou da excelência dramatúrgica, sem a contrapartida dialógica do elemento essencial do teatro: o ator. Neste capítulo, todavia, o brilho do Armazém ofusca. Atuadores que encaram de frente o “perigo ligeiro” do pensamento, mantém-se na “pegada do destino”, com a humildade do peregrino frente à sina, nada mais querendo ser senão a “sandália de passageiro”. Desde as sutilezas interpretativas de Patrícia Selonk, que vai do solilóquio intimista à explosão dramática sem perder a coerência nem se desviar da humanidade do ser que representa, ainda que simbólico, até a densidade interpretativa de Thales Coutinho, que se condensa em lágrimas pungentes, para logo mais levar a platéia ao riso, sem qualquer artifício, quer dizer: seguindo rigorosamente as contradições do personagem em fluxo contínuo. E o que falar de Ricardo Martins, que se encarrega do Espectro do Ator e do travesti Rufus? Dois tipos em si mesmos estereotipados, que convidam o ator à caricatura histriônica, são aqui construídos com admirável dignidade artística, sem concessões ao gratuito. E Rosana Stavies, que entrou substituindo a maravilhosa Simone Mazzer no papel de Léa, navega pelos sentimentos contraditórios do personagem, em comovente sinceridade, absoluta entrega e rigorosamente desenhadas emoções. O mesmo rigor interpretativo nota-se no elenco de apoio, integrado por Marcelo Guerra, Simone Vianna, Camila Nhary, cada qual se encarregando de pequenos papéis, que fermentam as situações das personas desdobradas do Espectro. Conjunto homogêneo, tanto nas técnicas quanto no entendimento da proposta estética a que dá vida em cena. 

O que mais fascina no elenco é a diversidade de tipos, que não leva, no entanto, à dispersão dos temas. Estão todos executando a mesma partitura, observando meios e procedimentos peculiares de um grupo formado com o propósito de se aprofundar na arte do ator e, ao mesmo tempo, criar sua própria dramaturgia. Ao longo da trajetória, que já superou duas décadas, desenvolveu técnicas adequadas à linguagem pesquisada, que resultou em belos espetáculos e chega à depuração neste “Antes da coisa toda começar”. 

Com alegria sempre renovada assistimos, desde meados dos anos 1990, ao crescimento do teatro brasileiro. Esgalhou-se pelo território nacional reinventando-se em modos de produção e distribuição, incluiu platéias indo às periferias ou nelas se estabelecendo, floresceu nas mais diversas linguagens estéticas e, de vez em quando, surpreende com espetáculos primorosos e altamente significativos. Por isso, “Antes da coisa toda começar” não é exceção, mas brilhante exemplo dessa nova fase do nosso teatro. Afaste-se a idéia de casuísmos, do “acertou a mão”, ou do “deu certo”. É fruto do trabalho diuturno de artistas amantes do ofício, buscando sempre o aprimoramento cultural, discutindo em grupo temas importantes deste momento histórico e procurando, no coletivo, desenvolver técnicas que possibilitem a expressão do pensamento crítico sobre esses temas e viabilizem sua comunicação ao espectador. Com inteligência e persistência esses grupos levam o teatro atual à altura do nosso teatro em seu melhor tempo (os anos 1960). Não por acaso muitos se referem à atual fase como “renascimento”. Frente a uma obra como “Antes da coisa toda começar” é legítimo imaginar que logo o renascimento se reverterá em benefícios para o país, tanto no nível cultural e espiritual quanto no nível material. 


Nota: Os poemas de Maurício Arruda Mendonça citados no texto são do seu livro “A sombra de um sorriso” (Londrina: Atrito Art Editorial, 2002).


Extraído da revista eletrônica Antaprofana

domingo, 13 de março de 2011

TEMPORADA MEDUSA DE RAY-BAN



OS ÓCULOS DA VIOLÊNCIA

Nova montagem da peça Medusa de Rayban, de Mário Bortolotto, estreia na quinta-feira, com direção de Maurício Arruda Mendonça e supervisão de Paulo de Moraes.

15/03/2011 – Jornal de Londrina

Fábio Luporini

A deusa grega mortal que tinha serpentes no lugar dos cabelos possuía um poder especial: um olhar que tornava pedra quem a encarasse. Assim como o olhar petrificante de Medusa, a violência choca e paralisa quem se presta a encará-la. Nesta analogia o dramaturgo Mário Bortolotto foi buscar inspiração para a peça Medusa de Rayban, escrita em 1996, encenada inúmeras vezes e já premiada. A deusa grega ficou só na referência, deixando a cargo de dois personagens, que são assassinos de aluguel, a missão de criticar de forma bem-humorada o jeito que o ser humano lida com o problema da violência.
Agora, os dois assassinos de aluguel que convivem com a violência voltam aos palcos londrinenses numa remontagem do poeta e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça, que dirige o espetáculo, com a supervisão geral de Paulo de Moraes, do Armazém Companhia de Teatro. “É uma fábula sobre a violência constituída por um texto fragmentado, com esquetes sucessivas”, explica o diretor. A peça trata de dois amigos cujo ofício é matar por encomenda. “Um deles está se despedindo da profissão. O texto é uma investigação sobre a violência, de forma cômica, e que narra essa ligeira crise de um dos assassinos de aluguel, que desiste dessa vida de cometer crimes”, comenta.
A referência à Medusa, que não aparece como personagem, dá ao espectador a possibilidade de interpretações acerca da violência. “É como se a violência fosse nosso olhar desavisado perante a agressividade humana, que acaba nos petrificando e nos tornando pessoas violentas”, ressalta Mendonça. Talvez fique paralisado o indivíduo que encara de perto as situações de violência do cotidiano, paralisando ante as causas. “Essa relação é deixada a critério do espectador porque possibilita várias leituras”, aponta. Em uma delas, “o criminoso em si é quem encara a violência e vai decapitando o status quo” enquanto em outra interpretação “a violência é algo já dado e mítico”.
Uma crítica bem-humorada, mas que também têm um ponto de interrogação ao final. “O Mário tem essa característica de começar os textos com bom humor e depois vão se tornando mais sérios. Ele cativa, mas coloca o espectador nessa condição de não só rir, mas refletir no final”, avalia o diretor. A crítica humorada é facilitada pelas caricaturas dos personagens, delineados a partir de uma linguagem de quadrinhos. “Os personagens são de forma caricatural e ágil”, diz. Ao todo, serão cerca de 55 minutos de encenação.

Além do autor

Depois de diversas encenações, além da direção e supervisão geral, a montagem que se diferenciar ao tentar tomar uma distância do universo visual e referencial do autor. “O Mário tem uma forma de escrita para si próprio, pois ele tem um time de ator, de diretor, puxando os personagens para uma levada mais irônica. Não descartamos isso, mas propusemos uma leitura que escape do universo visual e referência dele, dar uma leitura além da clássica do autor”, explica. Um desafio. “Quando as obras são fortes, não tem como muito sair da forma como o autor concebeu. A peça praticamente lançou o Mário fora de Londrina”, afirma Mendonça.

Serviço:
Medusa de Rayban – Estreia nesta quinta-feira (dia 17), às 20h30, na Vila Cultural Cemitério de Automóveis (Rua João Pessoa, 103-A). Ingressos: R$ 10. Informações: 3344-5998.

Elenco da peça é formado por nomes do teatro londrinense

Adriano Gouvella, Mário Sérgio Fragoso, Monalisa Chicarelli, Nadia Val, Rogério Costa e Sérgio Mello são os seis principais atores que participam da montagem: todos do cenário teatral londrinense. “São tarimbados, com experiência, atores que eu considero muito bons. E por serem do meio teatral de Londrina, é legal para a cidade”, diz o diretor Maurício Arruda Mendonça. O processo de seleção ocorreu em dezembro do ano passado e contou com a participação do supervisor geral do espetáculo Paulo de Moraes, que está no Rio de Janeiro e veio a Londrina para participar da escolha do elenco.
Depois de selecionados, os atores iniciaram o trabalho juntamente com o diretor, assim como os ensaios. O trabalho teve início mesmo em meados de janeiro. A peça estreia nesta quinta, na Vila Cultural Cemitério de Automóveis, e terá duas temporadas: de 17 a 27 de março e depois de 7 a 17 de abril, sempre quinta, sexta e domingo às 20h30 e aos sábados em duas sessões: 20h30 e 22h30. O projeto tem patrocínio do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (Promic).

quarta-feira, 2 de março de 2011

CRITICA DE "ANTES" NA FOLHA DE SÃO PAULO


Espetáculo atravessa abismo da crise da representação teatral

"Antes da Coisa Toda Começar" encena luta de um ser contra os próprios fantasmas em narrativa não linear 


LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA 


O espetáculo posto em risco. "Antes da Coisa Toda Começar", da Armazém Cia. de Teatro, é um corajoso mergulho na indefinição das formas teatrais contemporâneas. Sem facilitar a recepção, impacta com a matéria cênica em bruto, carregada de sons e desempenhos.
O encenador Paulo Moraes, mais uma vez, escreve a dramaturgia em parceria com Maurício Arruda Mendonça. Os autores radicalizam na estrutura dramática, abdicando de um fio narrativo linear. A opção é pelo empilhamento de referências e narrativas, vagamente imantadas no eixo temático da criação artística.

ESTILHAÇOS

O ponto de partida é a suposição de que o espectro de um ser humano -ex-ator, personagem ou emanação- esteja em luta com seus próprios fantasmas.
Estes configuram identidades prosaicas com arcos de ação que se desenvolvem em paralelo, mas tendo em comum a hipótese de uma imaginação atormentada estilhaçando-se em fragmentos de sentido.
Para efetivar essa ciranda de encarnações fugidias, a utilização de canções e a pontuação musical constante são uma opção feliz. Todo elenco reveza-se para sustentar um denso pano de fundo sonoro, articulado pela sutil direção musical de Ricco Viana.
Outro aspecto decisivo é a cenografia do próprio Paulo Moraes e de Carla Berri, que configura um jogo fascinante de paredes móveis, ora armando um espaço de confinamento, ora expandindo-se e acolhendo a projeção de imagens de forma orgânica.
Poucos adereços engenhosos servem ainda aos fiapos de ficção remanescentes. Este aparato cênico seria inútil não fosse o extraordinário desempenho dos intérpretes. A começar por Ricardo Martins, compondo a difícil e imaterial figura do espectro e dobrando em um vibrante travesti.
Thales Coutinho, como o ator em crise, é pungente, e a sempre ótima Patrícia Selonk fulgura como uma adolescente inflamada de desejos.
O maior destaque é Rosana Stavis, que se confirma como uma das grandes atrizes brasileiras no momento ao cantar alguns rascantes números musicais com a energia de uma diva.
Camila Nhary, Simone Viana e Marcelo Guerra, assumindo vários papéis, completam o quadro de excelência das interpretações. "Antes da Coisa Toda Começar" é uma travessia no abismo da crise da representação dramática. Sem pretender redenções, procura trilhas possíveis para continuar narrando algo. Ainda que seja o irredutível embate entre o vivo e o morto.

ANTES DA COISA TODA COMEÇAR

QUANDO qua. a sáb., às 19h30, e dom., às 18h; até 3/4
ONDE Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112, 3113-3651)
QUANTO de R$ 15
CLASSIFICAÇÃO 16 anos
AVALIAÇÃO ótimo