quarta-feira, 4 de julho de 2012

CRÍTICA DE "O OUTRO VAN GOGH"

Fernando Eiras em cena em "O Outro Van Gogh"

VEJA RIO RECOMENDA
1 de agosto de 2012


O Outro Van Gogh. Um dos maiores pintores de todos os tempos, Vincent van Gogh (1853-1890) não vendeu um único quadro em vida. Durante anos, foi sustentado pelo irmão mais novo, Theo, marchand respeitado em Paris e defensor ardoroso do então incompreendido gênio da família. Testemunho dessa amorosa relação, a correspondência dos dois inspira o primoroso texto do monólogo escrito por Maurício Arruda Mendonça. No Teatro Poeira, Paulo Moraes, seu parceiro frequente na Armazém Companhia de Teatro, dirige a peça com precisão e também cuida da cenografia despojada — piso claro, uma cadeira e um abajur valorizados pela iluminação de Maneco Quinderé. Ator tarimbado, Fernando Eiras passeia com desenvoltura por variados estados de espírito ao viver Theo no fim da vida, internado em um sanatório. Entre realidade e delírio, o personagem relembra a sua trajetória e, por tabela, a do irmão, em montagem comovente.


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Teatro/CRÍTICA

21 de julho de 2012


"O OUTRO VAN GOGH"
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Montagem imperdível no Poeira


Lionel Fischer



         "O espetáculo localiza-se nos últimos dias de vida de Theo Van Gogh (1857-1891), irmão, confidente e mantenedor do grande pintor holandês Vincent Van Gogh (1853-1890). Internado numa casa de saúde, abalado pelo repentino suicídio de seu irmão mais velho, pelos pesados encargos de sustento de sua mulher, filho e de seus pais, e já sofrendo os mesmos sintomas radicais da doença mental dos Van Gogh, Theo repassa acontecimentos afetivamente importantes na sua relação com Vincent em sua luta por tornar-se um pintor. Como num réquiem, o texto fala, sobretudo, do amor visceral que uniu e levou à morte esses dois irmãos".

         Extraído do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Daniella Cavalcanti, o trecho assina sintetiza o enredo do monólogo "O outro Van Gogh", em cartaz no Teatro Poeira. Com texto assinado por Maurício Arruda Mendonça, a montagem chega à cena com direção de Paulo de Moraes e interpretação a cargo de Fernando Eiras.
"Se Deus não existe, então tudo é permitido", afirmou Dostoiévski.
Mas caso exista, certamente nos deve ao menos duas explicações: por que permitiu que Mozart morrese na mais absoluta miséria e fosse enterrado numa vala comum? E por que não intercedeu junto à humanidade para que Van Gogh vendesse ao menos dois quadros, ao invés de apenas um? Tal qual um Hamlet destituído de providencial caveira, ponho-me a cismar...
Mas aqui, cismar ou não cismar, é questão irrelevante. O fundamental é afirmar que Maurício Arruda Mendonça escreveu um texto belíssimo, impregnado de profunda dor e intensa poesia, facultando ao público um retrato emocionante e emocionado da visceral relação de amor e cumplicidade entre os irmãos Theo e Vincent. E isto sem excluir outras reflexões mais do que pertinentes, tais como a aterradora capacidade das classes dominantes de massacrar aqueles que não se enquadram aos padrões impostos por seus interesses, seja em que campo fôr.
Com relação ao espetáculo, Paulo de Moraes impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com os conteúdos em jogo. Valendo-se de marcações refinadas e expressivas, todas de altíssima expressividade, o diretor consegue materializar tanto as angústias do personagem quanto seu intenso lirismo e seu incomensurável afeto. Sob todos os pontos de vista, uma das melhores direções assinadas por este encenador brilhante.
Quanto a Fernando Eiras, todos sabemos que se trata de um intérprete de vastíssimos recursos expressivos, tanto no tocante ao texto articulado como no que concerne ao universo gestual - afora sua notável habilidade para o canto. Mas há algo em Fernando Eiras que transcende a técnica: sua maravilhosa capacidade de entregar-se por completo aos personagens que encarna. Tenho sempre a sensação, quando o vejo em cena, que ele se apropria de tal forma de seus personagens que é quase como se os tivesse criado, como se tivessem nascido não da imaginação de um autor, mas de suas entranhas. E nisto reside, em minha opinião, o que difere um grande ator de um ator de exceção. Fernando Eiras pertence a este último e seletíssimo grupo.
Na equipe técnica, Paulo de Moraes responde por uma cenografia simples e despojada, constituída basicamente por uma cadeira e uma luminária, mas certamente muito expressiva. Igualmente irretocáveis os figurinos de Rita Murtinho, os vídeos de Ricco e Renato Vilarouca e a trilha sonora de Ricco Viana. No tocante à luz, é realmente admirável a contribuição de Maneco Quinderé para o fortalecimento de estados emocionais tão intensos e diversificados. Creio mesmo que seu trabalho luminístico mereça ser encarado como a tradução visível dos sentimentos do atormentado e emotivo protagonista. Sem a menor dúvida, a melhor iluminação da atual temporada. Finalmente, um destaque todo especial para a deslumbrante preparação corporal feita por Patrícia Selonk.

O OUTRO VAN GOH - Texto de Maurício Arruda Mendonça. Direção de Paulo de Moraes. Com Fernando Eiras. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 19h.

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UM RARO MONÓLOGO

Bárbara Heliodora
O Globo – 4 de julho de 2012.

Está em cartaz no Teatro Poeira o delicado texto de Maurício Arruda Mendonça “O outro Van Gogh”, isto é, sobre Theo, irmão do pintor. A dedicação desse irmão, marchand que com extraordinária dedicação sustentou Vincent, acreditando profundamente nesse talento adiante de seu tempo — as cores fortes que usava, como explicava Theo, não vendiam porque não combinavam com a mobília pesada e escura dos salões burgueses. O texto, que encontra Theo no hospital, com o raciocínio corrompido pela doença, desliza com leveza e poesia entre a sanidade e a loucura, que por vezes é de Theo e por vezes de Vincent, rememora a família, a infância, os descaminhos pisados pelo talento até se encontrar na pintura, a luta insana para sustentar a mulher e os filhos sem deixar desamparado o gênio incompreendido. É um texto de grande qualidade, comovente e revelador, um dos raros monólogos que deixam o público desejando que fosse mais longo.
            A encenação é o veículo exato para a história desse outro Van Gogh e de sua total integração na vida do irmão: a música de Rico Viana e Renato Vilarouca marca com exatidão os climas do monólogo, assim como a luz de Maneco Quinderé estabelece cada detalhe. Com o despojado figurino de Rita Murtinho, Theo se movimenta bem sobre um piso claro, vazio, uma única cadeira, uma lâmpada de pé, que formam o cenário, criado pelo diretor, Paulo de Moraes, compondo com perfeita harmonia o universo para esse apaixonado devaneio de quem não tem mais norte, uma vez morto Vincent. A direção é exata, cuidada em preservar o delicado equilíbrio entre a lembrança e a angústia, entre a responsabilidade e a dor, medindo cada movimento segundo a memória que vai e vem, que pode ser de Theo ou de Vincent, de tal modo o outro viveu a vida do irmão.
A atuação de Fernando Eiras como esse Theo que já começa a se irmanar com Vincent também na morte é exemplar. Com a ótima preparação corporal de Patricia Selonk, Eiras paira entre a sanidade e o devaneio, lembra a alegria de algum momento da infância ou a tristeza que tanto dominou a vida de adulto dos dois irmãos, por vezes quase coreografando o pensamento, mas sem qualquer exagero, sem qualquer gesto inútil. Assim também a modulação da voz, que varia com a emoção e com o personagem, nessa mescla que povoa a solidão desse outro Van Gogh em seu fim de vida. É um espetáculo comovente, penetrante, bom de texto e de encenação, que confirma o Teatro Poeira como uma casa que vela pelo bom teatro.