sábado, 28 de março de 2009

PROFETA 70


Nos anos 70, quando o londrinense caminhava pelas calçadas, ouvia nos rádios a voz do ex-beatle George Harrison cantando “My Sweet Lord”, enquanto carangos quentes cruzavam a toda a Rua Prof. João Cândido, e cabeludos ficavam na maior curtição num banco comprido e sinuoso da Praça Gabriel Martins apelidado de “minhocão”, conversando sobre altos babados, porque havia uma sensação naquela juventude de que o mundo estava realmente mudando!

Guru

No meio da turma de rapazes com cabelos até os ombros, um barbudo se destacava com sua calça Lee esfarelada e sua Havaiana velha. O cara falava manso como se estivesse num transe. Parecia um mestre orientando seus discípulos. Quem chegasse perto do Profeta tinha a nítida impressão de sentir aromas exóticos e sons de cítaras indianas enquanto ele falava. E logo o cara já ficava calmo e descansado só de escutar as palavras do guru de Havaianas. Profeta era um cara definitivamente vegetariano e iluminado. Gostava de contar que tinha ido pra índia em 1968. E todo dia fazia a sua costumeira preleção:
– O mundo ocidental vai acabar, bicho! A patota tem que se preparar pra grande viagem dimensional!
Era maravilhoso ficar ouvindo aquele cara de vinte e poucos anos falar com convicção e sabedoria, enquanto a gente ainda tinha um monte de grilo, e enfrentava a maior barra em casa, e mais a caretice das pessoas. Porém o Profeta sabia o caminho das pedras!
Aí um dia o Noirton veio falar com o Profeta. Tinha acabado de sair do Cinerama e se despedir da namorada. Ele queria orientação, conselho, esses troços:
– Pô, Profeta! A Suzy tá por fora, meu! Cê acredita que ela não gosta do Black Sabbath?!
Tranqüilo e calmo, o Profeta soltou uma longa baforada de seu Minister, e disse:
– Chocrível!
Noirton não aceitava que sua adorada Suzymeire só apreciasse sambas de Antônio Carlos & Jocafi. Isso era o fim para um fã de Ozzy Osbourne. O Profeta meditou sobre o assunto por mais ou menos uma hora. Então deu um conselho àquele cabeludo, incondicional adepto do rock-pauleira:
– No amor não há remédio senão aceitar...
Esse ensinamento místico quase fundiu a cuca de Noirton que respondeu com ar de quem tinha sacado tudo e mais um pouco:
– Podes crer!
Abuso

Algum tempo depois Noirton voltou ao minhocão procurando o Profeta. O cabeludo apaixonado parecia pálido. Profeta foi logo perguntando o que tinha acontecido. Noirton explicou que tinha sido submetido a uma longa e torturante sessão de sambas nos últimos dias. É que a Suzy achou chuchu beleza essa disposição do Noirton de querer ouvir o estilo de música que ela gostava e exagerou. Noirton estava realmente mal. Estava transtornado de tanto ouvir: “Você abusou, tirou partido de mim, abusou...”, o grande sucesso da dupla Antônio Carlos & Jocafi. E Noirton se lamentava:
– Eu tô gamado na Suzy, Profeta! Mas não vou sobreviver se tiver de ouvir esse tipo de som! Quê que eu faço, me dá uma luz!
– Faz o mapa astral da tua gata, bicho.
– Corta essa, meu! A Suzy não acredita em astrologia!
– Sei... A tua gata fica só lá no mundinho dela, não sabe que a grande revolução está acontecendo. É ou não é?
– Ela não tá na nossa, Profeta! Não tá!
– Podes crer.
– Se continuar assim, eu vou ter ouvir Toquinho e Vinícius pro resto da minha vida, cara!
– Pô, Noirton. Só tem uma solução. Eu vou ter de trazer a tua gata pra nossa filosofia!
Noirton pensou por instante, abriu um sorriso nicotinado, e arrematou:
– Falou e disse!

Incenso

Foi então que o profeta começou craniar um plano para converter Suzymeire à astrologia, à sabedoria oriental, ao pensamento hippie, ao rock-pauleira e ao vegetarianismo. Num lampejo de desprendimento e profunda visão kármica, o Profeta teve uma inspiração: marcou uma festa na casa dele num sábado de lua cheia. A patota deveria levar bebidas. Além de ceder a casa, o Profeta também se encarregaria dos incensos, dos baseados e do som, sem esquecer logicamente de uma sessão porrada de Black Sabbath. Era uma idéia genial já que naqueles tempos a ditadura militar estava paranóica com os jovens, e uma festa era uma rara ocasião para relaxar e encontrar com os amigos.
Chegou o sábado marcado. Os cabeludos de Londrina começaram a descer a Rua Goiás. A casinha de mata-junta do Profeta era num lugar superbacana, ficava de frente pro vale, lugar de onde se podia avistar um monte de estrelas. Noirton chegou com Suzymeire. Finalmente seus amigos seriam apresentados à grande paixão dele. E que paixão! Suzy era uma gata deslumbrante. Morena de olhos verdes, corpo escultural, uma delícia de vinte anos. O profeta, que estava meditando no quintal, até perdeu a concentração quando viu aquela deusa. Realmente, Noirton estava numa sinuca de bico.

Sabá

A festa transcorria no maior astral. Tinha motoqueiros papeando na varanda; casais se amassando na penumbra da sala; lókis fazendo caipirinha de vodka com crush; e, no banheiro, o som rolando, já que o Profeta tinha instalado sua vitrola lá, pois, segundo o sábio, as louças sanitárias favoreciam a acústica. Quem olhasse de longe teria a impressão de que a casa do Profeta flutuava numa névoa esverdeada tamanha paz & amor que de lá exalavam. Porém, o Profeta não imaginava que tivesse tantos seguidores daquele jeito. Simplesmente todos os cabeludos de Londrina não paravam mais de chegar na casinha da Rua Goiás. A alegria era realmente contagiante. Todos estavam muito excitados e começaram a dançar pela casa inteira.
No auge da dança o Profeta jogava I Ching para Noirton e Suzy no quarto. Profeta fazia altas reflexões e, a cada pensamento, Suzy parecia ficar mais interessada. Em alguns momentos ela lacrimejava, até que seu semblante foi ficando completamente sereno. Profeta explicava para Suzy que ele estava ali para profetizar que o mundo ocidental, capitalista, machista, quadrado, onde o sexo é considerado pecado, estava para acabar; que os pilares do pensamento racional já estavam abalados; que os alicerces das crenças judaico-cristãs estavam ruindo; e que Suzy precisava penetrar as portas da percepção. Foi aí que Suzy soltou um grito de êxtase místico. E disse que estava sentindo coisas.
– Que coisas?, perguntou o Profeta.
– Estou sentindo o chão tremer sob meus pés...
Então, de repente, aconteceu o que ninguém jamais poderia prever: lotada de gente, a casa de madeira do Profeta começou a desabar. Foi um griteiro, um corre-corre danado. Não deu outra: a casa caiu. Uns vinte cabeludos sofreram escoriações.

Sumiço

No dia seguinte, no minhocão, o Profeta não apareceu. Havia um clima de tristeza no ar. Os cabeludos não se conformavam. O profeta, um cara superbacana, que fala umas palavras manêras, segura a barra de todo mundo, ele organizou uma festa chocante pra patota, e agora o cara tá sem casa pra morar? Não era certo, bicho. De jeito nenhum! E os cabeludos ficaram horas a fio tentando arranjar uma solução para tamanha injustiça cósmica contra o Profeta. Então o Noirton teve a feliz idéia:
– Por que a gente não faz uma rifa?
Alguém disse que tinha uma guitarra Gianinni encostada, outro que podia arranjar uma radiola, outro uma coleção completa do Nat King Cole, e em pouco tempo os cabeludos tinham organizado uma bela rifa com um punhado de prendas atraentes.
Movidos pelo desejo de ajudar a quem sempre os ajudara, os cabelos venderam rapidamente todos os números e arrecadaram um quantia em dinheiro sensacional, que daria para o Profeta alugar uma boa casa por, pelo menos seis meses, e agüentar as pontas.
No dia da entrega do dinheiro ao Profeta ele chorou e agradeceu de joelhos, com a humildade de um verdadeiro guru. Segundo o Profeta, aquele gesto de compaixão de seus amigos era um sinal de que suas profecias estavam certas, e que a grande revolução estava de fato acontecendo naquele exato momento, inclusive isso era fruto de uma confluência astral que acabava de inaugurar a Era de Aquários em plena Londrina. Visivelmente emocionado, Profeta pediu licença a todos para se retirar, pois gostaria de ficar a sós meditando sobre os escombros de sua velha casa na Rua Goiás. O profeta queria agradecer aos avatares essa dádiva financeira que acabara de receber.

Espeto

Três dias depois ninguém mais conseguia achar o Profeta. Não havia notícias dele nem de seu paradeiro. Alguém aventou a hipótese de que o Profeta havia se desmaterializado ou desencarnado como Krishna. Mesmo assim, o Noirton percorreu preocupadíssimo pronto-socorros, hospitais e até o cadeião, e nada do Profeta. Após muitas buscas, apenas um garçon da Churrascaria Gaúcha sabia do guru de Havaianas. Dois dias atrás ele tinha servido uma belíssima costela para o Profeta e Suzymeire. De pileque, Profeta comentou que estava indo embora de Londrina. Noirton agarrou o colarinho do garçon implorando por mais detalhes. O Garçon não lembrava de nada. Ou melhor, ele se lembrava de um detalhe sem importância. Lembrou-se de que o Profeta, ao ouvir Antônio Carlos & Jocafi cantarem no alto-falante da churrascaria, virou-se para ele e pediu:
– Aumenta!
(Publiquei este conto originalmente na Folha Norte em 2007. Ele integra o meu primeiro livro de contos intitulado "Londrinenses" que será publicado este ano. A ilustração é do Robson Vilalba que atualmente está em Curitiba.)

8 Comentários:

Às 29 de março de 2009 às 06:41 , Blogger blog do yuri de v. sampaio, vim de longe, pelo fio do telefone e nas ondas espaciais disse...

Fabuloso Maurício!!

 
Às 29 de março de 2009 às 10:03 , Blogger Paulo Cunha disse...

Sensacional! É curioso como cada lugar tem o seu Profeta. Lembro que, aqui em SP, nos anos 70, tinha um cara que é a descrição perfeita do protagonista do seu ótimo conto. Um abraço, Paulo Cunha.

 
Às 29 de março de 2009 às 10:22 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

Valeu ai, Yuri! Grande abraço!

 
Às 29 de março de 2009 às 10:23 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

É Paulo, esse profetas parecem que são um só! Abração!

 
Às 29 de março de 2009 às 20:36 , Blogger r.ivano disse...

Herr Maurit,
Parabéns pelo prêmio, mais que merecido. Privilégio ter vc por perto. Parabéns tbém pela história do Profeta, mais um causo londrinense trazido à memória pela sua aguçada curiosidade e fina 'londrinidade'.
Grande abraço,
Rogério Ivano

 
Às 30 de março de 2009 às 04:04 , Blogger celia.musilli disse...

Maurício, muito bom ter vc tb na blogosfera. O conto é divertido e me remete a outras casas na Goiás em festa, nos anos 80...rs Um beijão, parabéns pelo blog e os prêmios todos.

www.sensivelldesafio.zip.net

 
Às 30 de março de 2009 às 10:32 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

valeu Rogério! Elogio vindo de um historiador, escritor e o ator do filme Satori Uso é privilégio!

 
Às 30 de março de 2009 às 10:33 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

Obrigado, Célia! O conto tem vários aspectos ficcionais mais o fato da queda da casa do profeta na Rua Goiaz (era assim a grafia) é verídico. O Paulão Rock'n'Roll parece que é testemunha.

 

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