quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

UMA PALAVRA SOBRE A PEÇA "BREU"

Kelzy Ecard e Andréia Horta em cena de "Breu"


Há algumas semanas fui ver o espetáculo “Breu” que está em temporada no Teatro III do CCBB do Rio de Janeiro. A dramaturgia é de Pedro Brício e conta com as atuações de Kelzy Ecard e Andréia Horta sob a direção de Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa.
          “Breu” é uma montagem instigante onde se percebem as mãos minuciosas das diretoras na definição do espaço cênico, da luz e, principalmente, na condução e diálogo criativo com as atrizes, para atingir uma precisa interpretação do texto dramático. Por isso, onde quer que consideremos “Breu”, vislumbramos um apuro artístico que se traduz num espetáculo de altíssima qualidade.
            No início da peça somos imersos literalmente pelo breu e a escuridão exerce seu poder ancestral suscitando o repouso ou a inquietação, conforme o estado de espírito de cada um. Essas sensações, de certo modo, dominarão o espetáculo. Ali no escuro somos colocados em situação acusmática: ouvimos aos sons sem que possamos ver de onde se originam. Por bons momentos nossa percepção se aguça e se concentra em reconhecer ruídos típicos de nossas prosaicas cozinhas. E, de saída, nos admiramos da desenvoltura de Kelzy Ecard em movimentar-se às escuras no belo cenário de Aurora dos Campos. Do breu então emerge a voz deliciosa da cega Carmem interpretada por Kelzy narrando uma história e, quando a iluminação de Tomás Ribas banha pela primeira vez a cena, é como se o sol e a luz nascessem. Não por acaso, a jovem que vem trabalhar na casa de Carmem chama-se Aurora – e aqui vem à lembrança as irmãs Aurora e Carmem Miranda.
            A história se passa numa casa de subúrbio do Rio de Janeiro, mas bem podia ser qualquer lugar do Brasil, já que o tempo da peça situa-se nos anos 70, no nefasto período da ditadura militar, cujos fatos infelizmente pertencem a todos nós. Carmem é irmã de um ativista de esquerda perseguido pelos militares. Aurora é uma jovem que vem trabalhar ajudando Carmem a preparar os quitutes que ela vende para sobreviver. Entre essas duas mulheres conhecidas/desconhecidas se estabelece um conflito, ora velado ora aberto, pleno de desconfiança e possibilidades de conciliação. Esse embate é um prato cheio para as atuações de Andréia Horta e Kelzy Ecard, esta última brilhando na composição de sua personagem cega; enquanto Andréia Horta estabelece uma empatia com o público, dada uma natural veia humorística. Predomina a interpretação internalizada e de certa forma contida como opção das diretoras Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa, o que é acertado, pois o tom da peça se mantém coeso e em nenhum momento resvala no melodrama, o que é um risco no presente caso.
             O texto de Pedro Brício é ousado e revela destreza no manejo da peça em um ato e na mecânica do drama de dois personagens. Quanto ao tema, enfrenta a pedreira de falar dos anos de chumbo da ditadura. Porém, acertadamente, Pedro evita a obviedade do panfleto político e mergulha fundo nas relações interpessoais, aí sim, sob o peso das ameaças terríveis daqueles anos. Com um texto predominantemente realista, mas que abre espaço para o lírico em pertinentes citações da filósofa Hannah Arendt, o dramaturgo é hábil na criação de atmosferas e, através de sugestões e elipses, não propõe um desfecho com “moral da história”. Pedro Brício, sem dúvida um dos principais nomes da cena teatral carioca, surpreende com um texto “impressionista”, espraiado, complexo, com grande potencial de encenação e, sobretudo, desafiador pelo fato de constituir-se de articulações que requerem reações muito precisas das atrizes.
            E aí entramos num ponto fundamental da arquitetura do espetáculo. O texto para ser plenamente executado e conduzir à belíssima cena final – na qual se sugere um instante de esperança no jogo de encantar-se com histórias inventadas, situação esta tão mais libertadora quanto mais se pensa no desastre que ronda as duas mulheres – exige uma concentração muito grande das atrizes no que diz respeito às súbitas mudanças de emoção propostas pelo dramaturgo e bem construídas pelas diretoras. Cada situação de desconfiança, cooperação, temor, relaxamento cômico entre as duas personagens precisa ser bem executada a fim de que o sentido profundo do texto surja em sua plenitude. Caso não se consiga atingir tal precisão há risco de que algumas passagens fiquem amortecidas. Entretanto, esse jogo de articulações entre as situações tende a se afinar cada vez mais durante a temporada, como é natural no ofício teatral.
Por essa somatória de qualidades artísticas, “Breu” é um espetáculo que merece ser visto e principalmente discutido. É e bom correr pra assistir. A temporada vai até o dia 11 de março.

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