O DIA EM QUE SAM - DA IMPORTÂNCIA DE SER RUEIRO
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Cena da peça "O Dia em que Sam Morreu" |
G1 - Globo Teatro
03/06/2014
Artigo: ‘O Dia em que Sam Morreu’
ou da importância de ser ‘rueiro’
O autor Maurício Arruda Mendonça
destaca a força das ruas na dramaturgia
Rua do
Lavradio, além da esquina da Rua do Senado. Meio da tarde. Brisa
forte aliviando o calor. Uma mulher pequena e arretada, cútis cor de
cobre, cinquenta e poucos anos, no celular, dizendo, em voz alta: “
– Deixa eu falar, f.d.p.! Eu sou uma mulher vivida! Me escuta! Amor
é liberdade!” Eu meditava sobre as palavras daquela mulher,
palavras sem refinamento, mas que encerravam verdades em sua poesia
rude. Pensava na beleza de cenas assim tomando uma gelada num boteco
da André Cavalcanti – aliás, rua machadiana, antiga Silva Manuel.
De fato, praticando a arte de andar a pé podemos ter experiências
extraordinárias, e também ordinárias. Com um copo a mais, diria,
até mesmo, sobrenaturais, como ocorreu naquela vez em que eu saía
da lúgubre Igreja do Santíssimo Sacramento, na Avenida Passos. E
eis que uma senhora de seus setenta e tantos anos, portuguesa, me
intercepta no último degrau. Ela perguntava onde ficava a Rua
Visconde do Rio Branco. Eu disse que estava indo naquela direção,
que ela me acompanhasse. Próximos à Rua Luís de Camões, a senhora
disse que estava recordando a região porque frequentava os sebos de
livros no tempo em que suas filhas estudavam: “Comprava livros mais
baratos. Precisava economizar muito na época.” Quando cruzamos a
praça, perto da estátua da Justiça, perguntou-me quem era o homem
montado no “cavalão”. Eu disse a ela que era Dom Pedro I, e
acrescentei: “Esse é monumento equestre mais antigo do Brasil.”
Ao que ela retrucou, com seu sotaque lusitano: “Não podia saber.
Não é do meu tempo.” Eu ri. Nós rimos. Rápido estávamos na
Visconde do Rio Branco. Ela me disse um número qualquer. Eu apontei
a direção. Ela me agradeceu. Por fim, disse: “Que o anjo te
acompanhe.”. Deixei-a prestes a atravessar a rua. Andei alguns
passos e olhei para trás. Ela não estava mais lá. O tempo não era
suficiente para ela ter atravessado. Olhei na outra calçada: nada. A
senhora havia desaparecido. Eram três horas da tarde de sol
abrasador.
Sentados
na calçada do Jato Bar, eu e o parceiro e mestre Paulo de Moraes.
Paulo refletia sobre a questão do poder, o que ele significava hoje
em dia. Falava a respeito de Macbeth, da visão de Shakespeare sobre
o poder. Foi quando as manifestações de junho do ano passado
aconteceram. Num piscar de olhos estávamos vivenciando os fatos e as
notícias, discutindo ideias com o ator Jopa Moraes, tantas
pensamentos suscitados pelos impulsos do nova peça a ser escrita,
somados aos acontecimentos das ruas. As reflexões para o espetáculo
O Dia em que Sam Morreu
começaram a fervilhar. Quem são esses que estão nos lugares do
poder? Poderiam ser um médico, que decide sobre vidas; uma juíza
que decide sobre a liberdade; um artista que nos enebria com sua
comicidade? Qual o alcance e resultado desses poderes submetidos aos
dilemas extremos, ao limite entre a vida e a morte, à ação mais
inescrupulosa? Queríamos falar de tudo isso com uma poesia crua, sem
lirismo, mais adequada ao desmascaramento das realidades de bom-tom
convenientemente construídas. O personagem diz aquilo que é.
Defende pontos de vista. Usa toda a força de que dispõe. Mas sem
justificar suas ações freudianamente ou representar realisticamente
os “desvãos da alma humana.” Buscávamos um texto que propusesse
uma discussão franca e honesta com o público sobre o que acontece
hoje. De que forma poderíamos expressar um assunto tão complexo
como o poder na contemporaneidade? Isso poderia ser chamado de peça
política? Sim, mas o teatro é uma arte essencialmente política.
Mas acertado seria pensar em O Dia em que Sam Morreu
como uma peça de ideias. Paulo achava que uma sucessão de reinícios
poderia ser a síntese entre o conteúdo e a forma do nosso drama.
Era o que a Armazém tinha urgência de compartilhar. Mas isso tudo
foi depois.
Antes
eu me encontrava no boteco da André Cavalcanti – rua cujo asfalto
mal consegue esconder os trilhos do bonde do passado – eu seguia
recordando o escritor João Antônio, cogitando sobre a importância
de ser rueiro, bater perna pela cidade, ouvir, ver, conhecer as
pessoas nos relances de seus dramas. E chegava a uma conclusão:
qualquer acontecimento nas ruas do Rio de Janeiro adquire
imediatamente uma importância histórica. Efeito das ideias, dos
sonhos, da indignação, da fome de justiça, certamente. Mas efeito
também das pedras dos calçamentos, dos largos, das praças, dos
monumentos, dos lugares atávicos da população, das disposições
únicas no corpo da cidade. Com dois copos a mais, eu já até
cunhava uma frase de efeito: “Não se grita ou se revolta sem
paisagem, sem arquitetura!”.
Mesmo
assim, só agora é que fui perceber que em
O Dia em que Sam Morreu
está presente na personagem da juíza Samantha, a indignação
daquela mulher falando de liberdade e amor que cruzei na Rua do
Lavradio. Só agora percebo que em Sam
a personagem da garota de programa Sofia poderia ser o anjo da
alegria de que me falara aquela senhora portuguesa que se evaporou na
calçada da Praça Tiradentes. Onde estarão essas pessoas? Gostaria
que elas passasem pela Lapa pra ver nosso espetáculo.
Maurício
Arruda Mendonça
é
dramaturgo da Armazém Companhia de Teatro
Fonte: http://redeglobo.globo.com/globoteatro/artigos/noticia/2014/06/artigo-o-dia-em-que-sam-morreu-ou-da-importancia-de-ser-rueiro.html
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