CRITICA SOBRE "ANTES DA COISA TODA COMEÇAR"
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
Teatro/CRÍTICA
Antes da coisa toda começar - Armazém Companhia de Teatro
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NÁUFRAGOS DE SI MESMOS
Lionel Fischer
"Quando principia...o espectro de um ator começa a materializar suas lembranças corporificando a memória. Dessa corporificação, surgem três personagens que espelham as facetas do seu eu. São três personagens que enfrentam impasses decisivos diante da vida. Téo é um ator em crise que começa a se questionar sobre o sentido de seu ofício. Zoé é uma jovem que avança sem amarras sobre as belezas e abismos da paixão. Léa é uma cantora que tenta se recuperar de uma tentativa de suicídio mal sucedida. Três personagens atravessando processos distintos, entre os impasses da vida e os impasses da morte, seguindo na tentativa de não se acomodarem diante das regras do mundo".
O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o que de mais essencial ocorre no presente espetáculo, mas sem com isso esgotar as possibilidades de apreensão do mesmo. Em cartaz no Teatro III do CCBB, "Antes da coisa toda começar" é o décimo nono espetáculo da Armazém Companhia de Teatro, fundada há 22 anos. Escrita em parceria por Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, cabendo a este último a direção, a peça chega à cena com elenco formado por Patrícia Selonk (Zoé), Thales Coutinho (Téo), Simone Mazzer (Léa), Ricardo Martins (Espectro/Rufus), Marcelo Guerra (Irmão de Zoé/ator bufão/ pai de Téo/enfermeiro), Simone Vianna (enfermeira/mulher 1/atendente/Katrina/puta/amiga2) e Verônica Rocha (irmã de Léa/Marcele/mulher 2/namoradeira/viúva/amiga1).
Exibindo uma estrutura fragmentária, o texto mostra, como me parece já ter ficado implícito, três histórias paralelas - as de Téo, Zoé e Léa, fruto das recordações do espectro. Mas isso não significa que o espectador não possa estabelecer conexões entre elas, a partir de sua própria subjetividade. E nada também o impede de se colocar na pele do espectro e imaginar serem suas as lembranças do personagem. Enfim, são muitas as variantes propostas pelo texto, no tocante ao olhar de quem o vê materializado na cena.
Quanto a mim, acho que as três histórias têm pelo menos algo em comum: a aterradora possibilidade da não concretização de desejos essenciais, o que geraria a igualmente aterradora tarefa de tentar lidar com impensáveis renúncias. Uma cantora que perde a voz, uma mulher que não consegue consumar sua paixão, um ator forçado a admitir sua falta de talento, são evidentemente situações trágicas e, portanto, imunes a soluções ditadas pela razão e pelo bom senso.
Assim, nada mais natural que se comportem como náufragos de si mesmos, como espectros a promover orgias sobre a campa das próprias sepulturas, como se todos fossem portadores de um tumor cerebral. O real da vida se afigura como intolerável e a dor de existir passa a ser a tônica. Neste sentido, seria ridículo que os personagens, com a lama até o pescoço, tentassem manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. Até porque talvez até mesmo os dedos já tenham desaparecido...
Enfim...esta é apenas uma opinião e, como toda opinião, sujeita a todos os enganos. Mas foi assim que me relacionei com este texto belíssimo, que aborda temas da maior pertinência, e que me provocou internamente o mesmo efeito que causaria à minha pele a incisão (sem anestesia) de um afiado bisturi. E com a seguinte agravante: um "ferimento" físico tem sempre a possibilidade de cicratizar; já aqueles que nos atingem a alma, aí a questão é bem mais complexa.
Com relação ao espetáculo, este talvez seja o mais belo e inquietante da atual temporada. Sendo Paulo de Moraes um encenador de exceção, nada mais natural que crie soluções tão criativas como imprevistas, frutos de uma imaginação que parece não ter limites. E nenhuma delas, cumpre registrar, ocorre de forma gratuita, como pueril reafirmação de um talento já há muito comprovado. Pelo contrário: todas as marcações, as pausas, a exploração das muitas alterações cenográficas, o universo gestual, os tempos rítmicos, a forma como os atores proferem o texto, enfim, tudo ocorre no sentido de conferir unidade a algo que, supostamente, deveria prescindir dela. Mas, como todos sabemos, uma das missões mais difíceis para um artista é organizar o caos. E neste quesito, Paulo de Moraes é um mestre.
No que se refere ao elenco, mais uma vez os atores da Armazém Companhia de Teatro imprimem sua marca registrada: vastos recursos expressivos, total entendimento do que estão realizando e uma notável capacidade de entrega. Assim, seria de certa forma injusto destacar uma ou mais atuações. Mas como a injustiça é inerente ao humano, torna-se impossível para mim não destacar as performances de Patrícia Selonk e Simone Mazzer, ainda que as demais também mereçam incontidos aplausos. Mas ver Patrícia e Simone em cena constitui, para mim, um privilégio difícil de ser descrito com palavras. A ambas, portanto, agradeço mais esta oportunidade que me proporcionaram de sair do teatro muito mais enriquecido do que quando nele entrei.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as maravilhosas contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta inesquecível empreitada teatral - Ricco Viana (direção musical), Paulo de Moraes e Carla Berri (cenografia), Maneco Quinderé (iluminação), Rita Murtinho (figurinos), Rico e Renato Vilarouca (projeções de vídeo), Ana Beviláqua (preparação corporal), Simone Mazzer (preparação vocal) e Alexandre de Castro (programação visual).
ANTES DA COISA TODA COMEÇAR - Texto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes. Direção de Paulo de Moraes. Com a Armazém Companhia de Teatro. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 20h.
Extraído do blog de Lionel Fischer: http://lionel-fischer.blogspot.com/2010/10/teatrocritica-antes-da-coisa-toda.html
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OUTRA CRITICA SOBRE ANTES DA COISA TODA COMEÇAR
POR ONDE COMEÇAR?
Crítica da peça Antes da coisa toda começar, da Armazém Cia. de Teatro
Edélcio Mostaço
Por onde começar? – um dia perguntou-se Roland Barthes, tentando indicar aos jovens que iniciam uma pesquisa possíveis percursos a serem trilhados. Ao longo do texto ele distribui preciosas dicas para ajudar novatos a não sucumbir às muitas e muitas tentações – quase inevitáveis, nestes casos – quando se quer abraçar o mundo com as mãos. Nos jovens, ambição e descontrole costumam ser desmesurados.
Antes da coisa toda começar não é uma pesquisa de linguagem, embora tenha demandado à Cia. Armazém longos laboratórios de investigação – o que é, de saída, a proposta de não dormir sobre os louros conquistados. Esta nova criação está organizada em torno das possibilidades existenciais abertas à vida de três jovens que se interrogam sobre seus limites. A dramaturgia leva a co-assinatura de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, dupla que já testou suas possibilidades de escritura conjunta em ocasiões anteriores. O que confere ao trabalho – uma estruturação de ações criada em colaboração improvisacional com o elenco – o feitio de coisa de palco; ou seja, um desapego à noção corrente de texto e um investimento rente à cena, um apoio de palavras que, medidas e meditadas, não é simples compilação.
Isso não quer dizer que o texto seja menos eficiente; ao contrário, visa destacar que não detêm cacoetes, deslizes, elucubrações ou tempos mortos; que esbanja desenvoltura e sabe extrair das sonoridades alguns momentos de poesia. Texto e encenação, nascidos juntos, constituem um produto cênico orgânico – como todo teatro deveria ser, aliás.
Afinal, do que se trata? São três histórias, três personagens centrais: um ator em crise, uma cantora que tentou o suicídio e uma garota apaixonada. Nada há de muito extraordinário nelas, a não ser o fato de que cada qual, a seu modo, está começando, preste a começar ou a recomeçar alguma coisa, no limite entre morrer e voltar a viver. Ou seja, Eros e Thanatos deambulam pela cena como sombras inspiradoras, bem como Apolo e Dioniso, extremos simbólicos reconhecíveis não apenas nas situações criadas como, especialmente, nos pontos distais onde cada uma das personagens toca em algum momento de sua trajetória.
Antes que adentrem o palco, este é ocupado por um ator que, em seu desamparo, se pergunta pelo teatro perdido, pela ficção que já não mais existe, pelo mistério que significa encarnar uma personagem. Hamlet meio ridículo, Édipo meio capenga, este ator é, como as demais criaturas, também um arquétipo e um paradoxo que interroga o público não apenas sobre a arte de representar como, em igual medida, a arte de viver a vida. Não como ela é (aquele naturalismo às vezes sórdido que torna tudo chato e rasteiro), mas como deveria ser (ah! os sonhos, que belas quimeras nascem de suas entranhas…). Fecha-se assim o círculo da proposição: por onde começar? Pelo teatro, ora pois.
E o teatro praticado pela Armazém – Paulo de Moraes à frente – é decididamente teatralista, dilatado, pletora de signos que nunca são simples ou unívocos. Se as três personagens nada possuem de extraordinário o mesmo não se pode dizer do contexto onde vicejam: uma cenografia surpreendente, uma iluminação de raro apuro sensual, um jogo cênico que é surpresa constante e cujas modulações visam desestabilizar as certezas do espectador. É na cena, portanto, que a espessura vivencial das criaturas nasce, é adubada e onde as metáforas se materializam para ganharem força e significação.
Eis um exemplo: Léa é a cantora que tentou se matar e agora amarga, na maior parte de suas cenas, a convalescença num hospital. Frustrada, melancólica, oscilando entre os impulsos de viver e morrer, ela se interroga sobre o significado de sua existência. No auge de uma dessas passagens ela canta – quase estridente, em seu limite, I am the Walrus.
Você não lembra mais dessa canção? Seria longo resumir todas suas implicações, razão pela qual remeto os interessados à Wikipedia. Apenas recordo que: I am the Walrus é uma música dos Beatles criada na ocasião em que circularam rumores sobre a morte do quarteto, e integra o filme The Magical Mystery Tour. A letra evoca monstros e alude a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (uma das montagens da Armazém), donde seu viés nonsense e espalhafatoso. E Léa, como qualquer outro ser humano, também deseja uma viagem que seja mágica e repleta de felicidade, um país coalhado de maravilhas. A cena nasce, portanto, do entrelaçamento destas muitas superposições. Símbolo grotesco, imagem de horror, fundo de espelho invertido, são várias as conotações possíveis de serem aqui surpreendidas, num instante em que, primando por refinado sentido de teatralidade, ela se imposta como metadiscurso de si mesma, ranhura performática sangrando sobre a pele que recobre corpo e consciência. Vivida por Simone Mazzer no auge de sua aparição no espetáculo, a cena não poderia ser interpretada por nenhuma outra pessoa, dadas as íntimas conexões existentes entre criadora e criatura, artista que vem há anos dando o melhor de si às montagens da Armazém.
Esta, assim como outras passagens, jogam o espetáculo num abismo – naquele sentido de crise entre o real e o irreal, o vivido e o desejado, o sujeito do discurso e o sujeito do desejo, através de formas circulares que vão e voltam, rateiam e engrenam, insistindo de algum modo nos temas nietzscheanos desencadeados em torno de Zaratustra.
Este íntimo liame entre a existência de cada um dos intérpretes e as personagens que fazem circular torna Antes da coisa toda começar um espetáculo de generosas proporções, vincado por inusitada conexão entre teatro e vida, ali onde o projeto, a vontade, a falha, a desistência borbulham num espaço indiferenciado.
A Armazém não seguiu as recomendações de Barthes. Embebedou-se com suas pulsões, recusou as fórmulas, os achados, para mergulhar no fundo do espelho de si mesma. Certa apenas de que a vida, antes da coisa toda começar, deve ser invenção.
Referências bibliográficas:
BARTHES, Roland. Por onde começar? in: O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos; tradução Mario Laranjeira – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. – (Coleção Roland Barthes). p. 173-186.
Critica extraída do site Questão de Crítica
http://www.questaodecritica.com.br/2010/11/por-onde-comecar/
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"Antes da Coisa Toda Começar" encena luta de um ser contra os próprios fantasmas em narrativa não linear
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Quando vê uma apresentação de “Antes da coisa toda começar” o espectador mais sensível, que tenha conhecimento de conceitos e propostas estéticas vigentes no teatro atual, de alguma maneira é arrastado a um universo ao mesmo tempo paradoxal e lógico. Não tem como apoio, balaustrada ou parapeito, a cultura naturalista, que se baseia no enredo e dele faz a narrativa cênica, na qual vigora a lógica aristotélica, de começo, meio e fim. Vê-se no território de imanências, onde o enredo – composto de vários enredos – o leva a abismos. Mas também espectadores alheios a tais conhecimentos, porém sensíveis, se deixam arrastar pelos atores a esses abismos, como prova o sucesso do espetáculo em suas temporadas.
(“Friagem” – Maurício Arruda Mendonça)
(“Andeiro” – Maurício Arruda Mendonça)
Extraído da revista eletrônica Antaprofana
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29 de março de 2011 | 0h 00
FESTIVAL INTERNACIONAL DE LONDRINA 2011
Extraído do blog de Lionel Fischer: http://lionel-fischer.blogspot.com/2010/10/teatrocritica-antes-da-coisa-toda.html
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OUTRA CRITICA SOBRE ANTES DA COISA TODA COMEÇAR
POR ONDE COMEÇAR?
Crítica da peça Antes da coisa toda começar, da Armazém Cia. de Teatro
Edélcio Mostaço
Por onde começar? – um dia perguntou-se Roland Barthes, tentando indicar aos jovens que iniciam uma pesquisa possíveis percursos a serem trilhados. Ao longo do texto ele distribui preciosas dicas para ajudar novatos a não sucumbir às muitas e muitas tentações – quase inevitáveis, nestes casos – quando se quer abraçar o mundo com as mãos. Nos jovens, ambição e descontrole costumam ser desmesurados.
Antes da coisa toda começar não é uma pesquisa de linguagem, embora tenha demandado à Cia. Armazém longos laboratórios de investigação – o que é, de saída, a proposta de não dormir sobre os louros conquistados. Esta nova criação está organizada em torno das possibilidades existenciais abertas à vida de três jovens que se interrogam sobre seus limites. A dramaturgia leva a co-assinatura de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, dupla que já testou suas possibilidades de escritura conjunta em ocasiões anteriores. O que confere ao trabalho – uma estruturação de ações criada em colaboração improvisacional com o elenco – o feitio de coisa de palco; ou seja, um desapego à noção corrente de texto e um investimento rente à cena, um apoio de palavras que, medidas e meditadas, não é simples compilação.
Isso não quer dizer que o texto seja menos eficiente; ao contrário, visa destacar que não detêm cacoetes, deslizes, elucubrações ou tempos mortos; que esbanja desenvoltura e sabe extrair das sonoridades alguns momentos de poesia. Texto e encenação, nascidos juntos, constituem um produto cênico orgânico – como todo teatro deveria ser, aliás.
Afinal, do que se trata? São três histórias, três personagens centrais: um ator em crise, uma cantora que tentou o suicídio e uma garota apaixonada. Nada há de muito extraordinário nelas, a não ser o fato de que cada qual, a seu modo, está começando, preste a começar ou a recomeçar alguma coisa, no limite entre morrer e voltar a viver. Ou seja, Eros e Thanatos deambulam pela cena como sombras inspiradoras, bem como Apolo e Dioniso, extremos simbólicos reconhecíveis não apenas nas situações criadas como, especialmente, nos pontos distais onde cada uma das personagens toca em algum momento de sua trajetória.
Antes que adentrem o palco, este é ocupado por um ator que, em seu desamparo, se pergunta pelo teatro perdido, pela ficção que já não mais existe, pelo mistério que significa encarnar uma personagem. Hamlet meio ridículo, Édipo meio capenga, este ator é, como as demais criaturas, também um arquétipo e um paradoxo que interroga o público não apenas sobre a arte de representar como, em igual medida, a arte de viver a vida. Não como ela é (aquele naturalismo às vezes sórdido que torna tudo chato e rasteiro), mas como deveria ser (ah! os sonhos, que belas quimeras nascem de suas entranhas…). Fecha-se assim o círculo da proposição: por onde começar? Pelo teatro, ora pois.
E o teatro praticado pela Armazém – Paulo de Moraes à frente – é decididamente teatralista, dilatado, pletora de signos que nunca são simples ou unívocos. Se as três personagens nada possuem de extraordinário o mesmo não se pode dizer do contexto onde vicejam: uma cenografia surpreendente, uma iluminação de raro apuro sensual, um jogo cênico que é surpresa constante e cujas modulações visam desestabilizar as certezas do espectador. É na cena, portanto, que a espessura vivencial das criaturas nasce, é adubada e onde as metáforas se materializam para ganharem força e significação.
Eis um exemplo: Léa é a cantora que tentou se matar e agora amarga, na maior parte de suas cenas, a convalescença num hospital. Frustrada, melancólica, oscilando entre os impulsos de viver e morrer, ela se interroga sobre o significado de sua existência. No auge de uma dessas passagens ela canta – quase estridente, em seu limite, I am the Walrus.
Você não lembra mais dessa canção? Seria longo resumir todas suas implicações, razão pela qual remeto os interessados à Wikipedia. Apenas recordo que: I am the Walrus é uma música dos Beatles criada na ocasião em que circularam rumores sobre a morte do quarteto, e integra o filme The Magical Mystery Tour. A letra evoca monstros e alude a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (uma das montagens da Armazém), donde seu viés nonsense e espalhafatoso. E Léa, como qualquer outro ser humano, também deseja uma viagem que seja mágica e repleta de felicidade, um país coalhado de maravilhas. A cena nasce, portanto, do entrelaçamento destas muitas superposições. Símbolo grotesco, imagem de horror, fundo de espelho invertido, são várias as conotações possíveis de serem aqui surpreendidas, num instante em que, primando por refinado sentido de teatralidade, ela se imposta como metadiscurso de si mesma, ranhura performática sangrando sobre a pele que recobre corpo e consciência. Vivida por Simone Mazzer no auge de sua aparição no espetáculo, a cena não poderia ser interpretada por nenhuma outra pessoa, dadas as íntimas conexões existentes entre criadora e criatura, artista que vem há anos dando o melhor de si às montagens da Armazém.
Esta, assim como outras passagens, jogam o espetáculo num abismo – naquele sentido de crise entre o real e o irreal, o vivido e o desejado, o sujeito do discurso e o sujeito do desejo, através de formas circulares que vão e voltam, rateiam e engrenam, insistindo de algum modo nos temas nietzscheanos desencadeados em torno de Zaratustra.
Este íntimo liame entre a existência de cada um dos intérpretes e as personagens que fazem circular torna Antes da coisa toda começar um espetáculo de generosas proporções, vincado por inusitada conexão entre teatro e vida, ali onde o projeto, a vontade, a falha, a desistência borbulham num espaço indiferenciado.
A Armazém não seguiu as recomendações de Barthes. Embebedou-se com suas pulsões, recusou as fórmulas, os achados, para mergulhar no fundo do espelho de si mesma. Certa apenas de que a vida, antes da coisa toda começar, deve ser invenção.
Referências bibliográficas:
BARTHES, Roland. Por onde começar? in: O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos; tradução Mario Laranjeira – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. – (Coleção Roland Barthes). p. 173-186.
Critica extraída do site Questão de Crítica
http://www.questaodecritica.com.br/2010/11/por-onde-comecar/
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TEMPORADA PAULISTANA
ESPETÁCULO ATRAVESSA ABISMO DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO TEATRAL
"Antes da Coisa Toda Começar" encena luta de um ser contra os próprios fantasmas em narrativa não linear
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA DE SAO PAULO 02-03-2011
CRÍTICO DA FOLHA DE SAO PAULO 02-03-2011
O espetáculo posto em risco. "Antes da Coisa Toda Começar", da Armazém Cia. de Teatro, é um corajoso mergulho na indefinição das formas teatrais contemporâneas. Sem facilitar a recepção, impacta com a matéria cênica em bruto, carregada de sons e desempenhos.
O encenador Paulo Moraes, mais uma vez, escreve a dramaturgia em parceria com Maurício Arruda Mendonça. Os autores radicalizam na estrutura dramática, abdicando de um fio narrativo linear. A opção é pelo empilhamento de referências e narrativas, vagamente imantadas no eixo temático da criação artística.
ESTILHAÇOS
O ponto de partida é a suposição de que o espectro de um ser humano -ex-ator, personagem ou emanação- esteja em luta com seus próprios fantasmas.
Estes configuram identidades prosaicas com arcos de ação que se desenvolvem em paralelo, mas tendo em comum a hipótese de uma imaginação atormentada estilhaçando-se em fragmentos de sentido.
Para efetivar essa ciranda de encarnações fugidias, a utilização de canções e a pontuação musical constante são uma opção feliz. Todo elenco reveza-se para sustentar um denso pano de fundo sonoro, articulado pela sutil direção musical de Ricco Viana.
Outro aspecto decisivo é a cenografia do próprio Paulo Moraes e de Carla Berri, que configura um jogo fascinante de paredes móveis, ora armando um espaço de confinamento, ora expandindo-se e acolhendo a projeção de imagens de forma orgânica.
Poucos adereços engenhosos servem ainda aos fiapos de ficção remanescentes. Este aparato cênico seria inútil não fosse o extraordinário desempenho dos intérpretes. A começar por Ricardo Martins, compondo a difícil e imaterial figura do espectro e dobrando em um vibrante travesti.
Thales Coutinho, como o ator em crise, é pungente, e a sempre ótima Patrícia Selonk fulgura como uma adolescente inflamada de desejos.
O maior destaque é Rosana Stavis, que se confirma como uma das grandes atrizes brasileiras no momento ao cantar alguns rascantes números musicais com a energia de uma diva.
Camila Nhary, Simone Viana e Marcelo Guerra, assumindo vários papéis, completam o quadro de excelência das interpretações. "Antes da Coisa Toda Começar" é uma travessia no abismo da crise da representação dramática. Sem pretender redenções, procura trilhas possíveis para continuar narrando algo. Ainda que seja o irredutível embate entre o vivo e o morto.
ANTES DA COISA TODA COMEÇAR
QUANDO qua. a sáb., às 19h30, e dom., às 18h; até 3/4
ONDE Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112, 3113-3651)
QUANTO de R$ 15
CLASSIFICAÇÃO 16 anos
AVALIAÇÃO ótimo
ANTES DA COISA TODA COMEÇAR
Consagração da poética que caracteriza o Armazém Cia. de Teatro e lhe dá revelo na cena atual.
por Sebastião Milaré
Verdadeiro poema cênico no qual palavras e imagens se completam e se constroem organicamente aos olhos do público. E coroa a parceria do poeta e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça com o diretor e dramaturgo Paulo de Moraes , que vem de longa data. Remonta ao final da década de 1980, quando o grupo se formou em Londrina, PR, com o nome de Companhia Bombom. Diálogo de dois poetas que amadureceram juntos e em companhia de poetas-atores, participantes das mesmas utopias, da mesma visão de mundo transubstanciada em arte.
Falar do enredo de “Antes da coisa toda começar” é o mesmo que falar de enredo em poesia. Quando existe, não é mais do que uma pista, sinalização da terra para pontos siderais. Existe no universo de abstrações, sítio em que a palavra o destrói e avança a páramos superiores, às regiões inefáveis do espírito.
O co-autor e diretor Paulo de Moraes expõe a proposta temática em texto publicado no programa de mão: “O espectro de um ator abre a cena. Solitário e enclausurado em si mesmo, começa a materializar lembranças corporificando a memória. A partir daí a coisa toda começa, ou recomeça”. Explica que “dessa corporificação surgem três personagens que espelham as facetas desse espectro”. E é bem incisivo: “São aspectos de uma mesma vida, estações, fractais, alegorias, cacos de espelhos colados do jeito que deu. O espectro não é mais um, inteiro, inquebrantável. É três agora”. E a proposta realiza-se plenamente em cena.
“Algo que nos levita/ asas & sonhares/ brilhos que espelhos flertam/ rosto que não retorna/ a certa altura da vida”.
(“Persona” – Maurício Arruda Mendonça)
Os três personagens e suas histórias são o mesmo personagem, com a história estilhaçada em possibilidades, porvires nebulosos, sonhos e frustrações, ânsias e esvaziamentos. O Espectro do Ator (Ricardo Martins) é sim um personagem: o Ser Humano. Todo homem é um ator frustrado em busca desesperada da plenitude, que como a areia sempre lhe escapa entre os dedos. A metáfora ilumina-se em Téo (Thales Coutinho), um ator em crise. Nele o jogo de espelhos se evidencia. Ator de ofício, com sofrimento constata sua canastrice. Que Ser Humano não sofreu igualmente por sua canastrice na vida? O passo em falso; o que devia falar e não foi dito no momento apropriado; o que foi dito e se desdobrou em dissabores... São tantos os descaminhos entre o Eu e o Outro, seja no teatro ou na vida “civil”.
Dentre as muitas camadas que levam a algum entendimento dessa faceta do personagem, irradiado pelo Espectro do Ator, comandante das ações cênicas, aflora certa ironia dos dramaturgos em relação aos contraditórios conceitos do teatro de hoje. O que o personagem nega, a trama afirma. Nega, por exemplo, o inconsciente coletivo como ambiente da interpretação dramática, sendo ele mesmo um arquétipo, contracenando com outros arquétipos, produtos do inconsciente coletivo. Afirma que o objetivo do teatro é contar uma história, de certo modo contrapondo-se à mais importante tendência teatral contemporânea, que é desvendar visões exemplares do indivíduo em choque com o meio através não da biografia do sujeito, mas de situações dramáticas, como é a tessitura de “Antes da coisa toda começar”. Esta posição, no entanto, é ambígua: mediante fragmentos, situações impactantes e abstrações, continua-se no teatro a contação de histórias. Mas não à maneira de um Alexandre Dumas ou um Jorge Amado, e sim de um James Joyce ou um Guimarães Rosa, que invadem os sentidos mais profundos da palavra, reinventando os significados e construindo o mundo através de novos significantes. Estado que o espetáculo traduz, enriquecendo os sentidos da palavra com imagens, sons, projeções luminosas.
A crise do ator reverbera também na experiência de Léa (Rosana Stavis), cantora que tentou o suicídio, mas não quer morrer. O suicídio propiciou-lhe o mergulho nas situações que perfazem suas desesperanças. Reverbera, igualmente, em Zoé (Patrícia Selonk) e seu irmão (Marcelo Guerra), a unidade do Bem e do Mal separada em dois corpos. Um não pode existir sem o outro, mas quando o Bem se contamina pelo seu oposto e opta pelo Mal, não há como fugir ao precipício.
“Nada a não ser/ destinos perdidos/ dor não se remove/ sem tortura/ a geada queima/
a flor mais pura/ Nada a não ser/ esse repentino fenecer.”
(“Friagem” – Maurício Arruda Mendonça)
As fronteiras entre a vida e a morte constituem a esfera em que se movem esses seres, fragmentos do Um. A própria Morte é corporificada (Simone Vianna) nas figuras de uma enfermeira e de uma puta, materializando no palco “esse repentino fenecer”. Vastas fronteiras habitadas pela solidão e pela angústia existencial, reveladas numa encenação rica de efeitos. Afaste-se desde já a idéia dos efeitos meramente impactantes ou embelezadores da narrativa. A intuição poética de Paulo de Moraes , municiada pela imaginação fértil e notável habilidade artesanal, recorre aos efeitos em termos estritos de linguagem plástica, que se harmoniza com as palavras e amplia os significados da trama, conduzindo-os às imanências através da luz, do som e dos espaços. Projeções de vídeo revestem a cena com formas e cores magníficas e, sublinhadas pela música, plasmam esses fragmentos humanos no limbo. Paredes avançam e se afastam criando espaços amplos ou ínfimos, produzindo sensações de liberdade ou claustrofobia. Luz que penetra as sombras para revelar o ser se debatendo na solidão, de repente abre-se toda, branca e fria, evocando a crueza hospitalar, umbral do Nada.
Neste capítulo, dos diferentes meios com as respectivas técnicas convergindo à linguagem do espetáculo, acha-se um dos valores sempre presente no trabalho do Armazém Companhia de Teatro. Apresentam-se aqui profissionais de alto nível vestindo a camisa do grupo, absolutamente comprometidos com a proposta estética colocada. É o caso da música e direção musical de Ricco Viana, que não surge como realce de momentos dramáticos: estabelece contínuo diálogo com os temas do discurso poético, com os atores/personagens, com os efeitos cênicos. Ou do vídeo de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca que conduz o discurso a patamares oníricos. Ou da iluminação de Maneco Quinderé, que neste trabalho reafirma-se como um dos melhores iluminadores da nossa cena. Além dos cenários projetados e desenhados por Paulo de Moraes em parceria com Carla Berri, afastando a idéia de “decoração” ou “ambientação” em favor da poesia vertida em estrutura material, arquitetura cênica eloqüente, que também dialoga com os personagens e as situações propostas.
“Não te encanes, pensamento/ És perigo ligeiro/ És pegada do destino/ Sina de peregrino/ Sandália de passageiro.”
(“Andeiro” – Maurício Arruda Mendonça)
Mas de nada serviria tanto brilho, talento e competência dos “criadores de efeitos”, ou da excelência dramatúrgica, sem a contrapartida dialógica do elemento essencial do teatro: o ator. Neste capítulo, todavia, o brilho do Armazém ofusca. Atuadores que encaram de frente o “perigo ligeiro” do pensamento, mantém-se na “pegada do destino”, com a humildade do peregrino frente à sina, nada mais querendo ser senão a “sandália de passageiro”. Desde as sutilezas interpretativas de Patrícia Selonk, que vai do solilóquio intimista à explosão dramática sem perder a coerência nem se desviar da humanidade do ser que representa, ainda que simbólico, até a densidade interpretativa de Thales Coutinho, que se condensa em lágrimas pungentes, para logo mais levar a platéia ao riso, sem qualquer artifício, quer dizer: seguindo rigorosamente as contradições do personagem em fluxo contínuo. E o que falar de Ricardo Martins, que se encarrega do Espectro do Ator e do travesti Rufus? Dois tipos em si mesmos estereotipados, que convidam o ator à caricatura histriônica, são aqui construídos com admirável dignidade artística, sem concessões ao gratuito. E Rosana Stavies, que entrou substituindo a maravilhosa Simone Mazzer no papel de Léa, navega pelos sentimentos contraditórios do personagem, em comovente sinceridade, absoluta entrega e rigorosamente desenhadas emoções. O mesmo rigor interpretativo nota-se no elenco de apoio, integrado por Marcelo Guerra, Simone Vianna, Camila Nhary, cada qual se encarregando de pequenos papéis, que fermentam as situações das personas desdobradas do Espectro. Conjunto homogêneo, tanto nas técnicas quanto no entendimento da proposta estética a que dá vida em cena.
O que mais fascina no elenco é a diversidade de tipos, que não leva, no entanto, à dispersão dos temas. Estão todos executando a mesma partitura, observando meios e procedimentos peculiares de um grupo formado com o propósito de se aprofundar na arte do ator e, ao mesmo tempo, criar sua própria dramaturgia. Ao longo da trajetória, que já superou duas décadas, desenvolveu técnicas adequadas à linguagem pesquisada, que resultou em belos espetáculos e chega à depuração neste “Antes da coisa toda começar”.
Com alegria sempre renovada assistimos, desde meados dos anos 1990, ao crescimento do teatro brasileiro. Esgalhou-se pelo território nacional reinventando-se em modos de produção e distribuição, incluiu platéias indo às periferias ou nelas se estabelecendo, floresceu nas mais diversas linguagens estéticas e, de vez em quando, surpreende com espetáculos primorosos e altamente significativos. Por isso, “Antes da coisa toda começar” não é exceção, mas brilhante exemplo dessa nova fase do nosso teatro. Afaste-se a idéia de casuísmos, do “acertou a mão”, ou do “deu certo”. É fruto do trabalho diuturno de artistas amantes do ofício, buscando sempre o aprimoramento cultural, discutindo em grupo temas importantes deste momento histórico e procurando, no coletivo, desenvolver técnicas que possibilitem a expressão do pensamento crítico sobre esses temas e viabilizem sua comunicação ao espectador. Com inteligência e persistência esses grupos levam o teatro atual à altura do nosso teatro em seu melhor tempo (os anos 1960). Não por acaso muitos se referem à atual fase como “renascimento”. Frente a uma obra como “Antes da coisa toda começar” é legítimo imaginar que logo o renascimento se reverterá em benefícios para o país, tanto no nível cultural e espiritual quanto no nível material.
Nota: Os poemas de Maurício Arruda Mendonça citados no texto são do seu livro “A sombra de um sorriso” (Londrina: Atrito Art Editorial, 2002).
Extraído da revista eletrônica Antaprofana
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"ANTES" INDICADA A 4 CATEGORIAS DO APTR
É com grande alegria que recebemos a notícia de que o espetáculo "Antes da Coisa Toda Começar" do Armazém Companhia de Teatro foi indicado a 4 categorias do 5o. Prêmio da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR). As indicações foram nas categorias Autor (Paulo de Moraes e Mauricio Arruda Mendonça), Cenografia (Paulo de Moraes e Carla Berri), Iluminação (Maneco Quinderé) e Melhor Espetáculo.
Anteriormente o espetáculo havia sido indicado ao Prêmio Shell na categoria Iluminação pelo belissimo trabalho do grande Maneco Quinderé.
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POÉTICA REFINADA DA CIA. ARMAZÉM
Fiel à sua vocação de vanguarda, novo espetáculo do grupo prima pela imaginação e pelas atuações vigorosas
29 de março de 2011 | 0h 00
Mariangela Alves de Lima - O Estado de S.Paulo
Há quase um quarto de século, a Armazém Companhia de Teatro se inscreve na linha de frente do nosso teatro. Outros grupos paranaenses deixaram as cidades de origem à procura da dimensão metropolitana, mas esse coletivo londrinense, agora com sede no Rio, parece ter conservado ao longo de mais de duas décadas uma afinidade singular com o sentimento de exclusão que a um só tempo oprime e desafia a vida artística provinciana. Antes da Coisa Toda Começar é em grande parte uma fala poética cujo tema central é um isolamento do criador, apartado da vida e das emoções cotidianas em razão de uma sensibilidade exasperada. É um assunto que a arte de vanguarda, de modo geral, dá por sabido ao elevar ao primeiro plano os dilemas da formalização. No texto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes , as personagens de três narrativas quase insubstanciais, em razão da descontinuidade, derivam de um narrador prolixo, mais antiquado do que intemporal. Estão presentes e têm uma atuação corporal vigorosa as figuras dessas histórias, no entanto a fragmentação ou incompletude de falas e ações lembra que ainda não estão prontas, que estão sendo geradas a partir de um gabinete, cuja perspectiva vai se aprofundando ao longo do espetáculo.
Definido como um espaço mental onde são desnecessários os vínculos com o realismo, o espetáculo dirigido e cenografado por Paulo Moraes começa com uma referência ao bufão da cultura flamenga e ibérica, signo da marginalidade artística que Michel de Ghelderode e Ramón del Valle-Inclán chamaram de volta ao teatro do século 20. Sentencioso, ainda recoberto pelos farrapos do passado cortesão, o bufão é também indício da melancolia que permeia a imaginação do grupo. O desejo de morte, a paixão incestuosa e a arte que se dilacera nos combates mesquinhos da vida cotidiana são pontos no desenho de uma trama tanto pictórica quanto verbal. As personagens falam, e às vezes falam demais, mas o modo como se movimentam, as atitudes corporais que as definem e as caracterizações fortes dos figurinos se sobrepõem ao peso dos diálogos. Dois amantes precariamente suspensos sobre o vazio, por exemplo, dão o recado sem precisar recorrer ao fraseado das paixões contrariadas. Do mesmo modo, um artista imobilizado por amarras dispensa considerações verbais sobre a dificuldade de manter-se fiel à vocação e íntegro no ofício.
Certamente, os anos de aperfeiçoamento técnico dos atores e dos recursos da cena permitem agora ao grupo diluir em uma atmosfera original as fontes utilizadas para a construção do espetáculo. O rock do século 20, a pintura e a dramaturgia flamengas, os sonetos renascentistas e a categoria do grotesco que recobre esse amálgama de um modo sutil não se apresentam como meras citações de uma civilização exaurida. São, antes, vivências de um repertório que o grupo estima e que a encenação domina. O sal da ironia tempera com parcimônia as representações da cantora e do ator, com moderação suficiente para distinguir essas figuras das paródias.
Para quem conhece o grupo de outras temporadas é notável a relativa serenidade corporal desse trabalho, uma vez que em espetáculos anteriores o fascínio pela interpretação acrobática dominava muitas cenas. Há coisas tão bem sabidas que não é mais preciso exibi-las. Grupos e companhias capazes de articular uma poética e refinar ao longo do tempo os meios de expressá-la acabam por definir uma assinatura, embora nem sempre o façam de modo consciente. A poética da Armazém Companhia de Teatro, reafirmada nesse espetáculo, valoriza a imagem cênica. O desgaste e o tom sépia da vegetação outonal e a pintura corroída de um salão abandonado formam o prólogo e a moldura significativa de Antes da Coisa Toda Começar.
Também os textos recolhidos ou produzidos pelos autores têm aqui o formato da retórica passadista e parecem sofrer a tentação da rima do ritmo uniforme. São pronunciamentos de escasso peso dialógico uma vez que, nesta peça, são projeções do personagem autor e, portanto, manifestações de um psiquismo livre das normas e da racionalidade. Poderiam ser pronunciados de modo mais coloquial e em tom mais baixo, sobretudo quando se referem aos estados anímicos dos artistas personagens. Enfáticas, em geral altissonantes, as locuções parecem competir com as imagens. Talvez se tornassem mais insólitas e inquietantes se a estranheza do enunciado poético fosse se revelando aos poucos sob o disfarce da entonação coloquial.
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EXPURGAÇÃO SEGUNDO A ARMAZÉM
Valmir Santos
O espectador assíduo de um núcleo teatral duradouro – e há muitos deles na faixa dos 20 aos 50 anos no Brasil – costuma depara com movimentos de retroação por parte dos criadores. Parece inevitável esse rasto atrás em busca de novos impulsos. Prestes a completar um quarto de século, a Armazém Companhia de Teatro olha o retrovisor do espelho e o atravessa. Incorpora relâmpagos de montagens anteriores. Quedas, ritos de iniciação, místicas pessoais que, afinal, constituem as veias de um coletivo. A matéria e o espírito da arte são agarrados à unha na metalinguagem do edifício ou barracão abandonado, cohabitado por seres fantasmais e de carne e osso. O grupo expõe as vísceras para inventariar o idílio de juventude legado da Londrina natal. Sua terra vermelha, seu café de “ouro verde” preso numa fotografia amarelecida. A utopia encontrou lugar na paisagem estonteante do Rio de Janeiro e ali cavou, de fato, uma ilha de experimentos num dos galpões da Fundição Progresso. Nada mal para quem comeu a poeira metafísica de Samuel Beckett com Esperando Godot, no final dos anos 1990, como sintoma de quem, recém-chegado, estava à deriva sob a árvore seca ora ensolarada ora enluarada.
Antes da coisa toda começar, o espetáculo de turno, espelha a visão angustiada do presente pelas dores do crescer e do envelhecer. Seus criadores fazem da autoanálise pública uma escolha arriscada. O recurso poderia vedá-los na redoma da expiação do passado. Ao contrário, lhes restitui justo os estilhaços com a vitalidade recalcitrante das atuações seguras e das belas composições sonoras e visuais. Um signo estruturante é a deformação. Ela impregna a dramaturgia espiralada de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes , o diretor - parceria de pelo menos 13 anos de paisagens e seres verbais. Grandes espelhos de superfícies borradas refletem a silhuetas de atores e de parte do público.
Nas canções, executadas ao vivo, rascantes de voz e de guitarra ampliam essa atmosfera melódica e melancólica. O rock, que costuma ser ostensivo nas mãos e nas trilhas de Moraes, aqui entremeia silêncios profundos com citações a Rolling Stones, Beatles, Supertramp e Nando Reis, entre outros. Há o acompanhamento de um músico integrado à cena, Ricardo Viana, além dos atores que se revezam em acordeão, teclado, contrabaixo, baterias e afins.
São três histórias de expurgação sobrepostas, fundidas e abduzidas, formaprocedimento parecido com o da peça anterior, Inveja dos anjos. Só que, aqui, toma-se como substrato as memórias reais de quem está no grupo ou em seu entorno. Os dilemas de juventude de Zoé, uma moça apaixonante pela convicção dos seus sentimentos, o que lhe custa um bocado, refletem a identificação de Patrícia Selonk com o papel, manifestam seus olhos marejados durante boa parte da sessão. Longe da hagiografia, os relatos processados como escrita teatral cortam a própria carne para ganhar tratamento ficcional. Não se faz terapia, se transpira.
Em Léa, a cantora de talento incomum que vai ao fundo do posso na sua ego trip, entrevemos a atriz Simone Mazzer com seu vozeirão blusie e jazzy, ela que cumpriu a temporada de estreia carioca e não pôde seguir para São Paulo por motivos profissionais. Em seu lugar, porém, Rosana Stavis também inscreve forte presença física – e voz é músculo -, arrebatando nos momentos mais tempestivos dessa personagem de mal com o mundo.
Téo, o ator veterano cansado dos amortecimentos do ofício, faz o balanço da vida para salvar-se da mediocridade que enxerga em todos, a começar por ele. Thales Coutinho é outro artista talhado para rir e chorar de si e dos seus pares divisados na ribalta e no esvaziamento da realidade. Dos três, eis o personagem que mais transita pela metalinguagem teatral no plano da memória, sendo um pouco do que se é em outros feito rei e bufão com Marcelo Guerra. O soberano e o fanfarrão, o homem e a mulher irmãos, o ator e o personagem, o verso e reverso: os sentidos duplos estão em jogo. (As atrizes Simone Vianna e Camila Nhary completam a equipe em cena. Verônica Rocha também foi substituída por Nhary nas apresentações em São Paulo ).
O flashback pulsa constantemente no coração das narrativas autônomas. A ciceroneá-las, a voz e a presença de um hierofante, o Espectro, espécie de “materialização espiritual” da arte do teatro em atuação de Ricardo Martins. Vem dessa figura o distanciamento para situar o espectador quanto aos fluxos de consciência. Téspis e Hamlet são evocados direta ou indiretamente, como na escultura craniana explorada em excesso, diga-se, ou na aparição de escape, na medida, da fã hippie que resgata o botão do figurino que Espectro perdeu na vigésima apresentação da tragédia de Shakespeare no municipal, muito tempo atrás. Em seu trabalho mais inspirado na companhia, Martins proporciona ainda um contraponto na pele de Rufus, o travesti amigo de Téo e responsável pelos pontos de respiro diante das trajetórias que topam com a morte em seus caminhos.
A clareza a respeito da finitude pode estabelecer, por reflexo, uma condição de objetividade diante do cinismo, da covardia da esterelização dos sonhos de geração. Quando se é adolescente, em regra, não dá tempo para pensar nisso. Nunca é forçoso lembrar que o nome Armazém sucede, meses depois da origem, o incomensurável Bombom pra quê se Pirulito Foi Feito para Chupar. Mais de duas décadas depois, a percepção desses artistas é de que os adultos adolescem pelas tabelas, desvalorizam a palavra, temem o médio e o longo prazos, urgem da boca para fora, reféns das ideias fixas. A xícara de chá de Alice virou a xícara de absinto. Na montagem, autocrítica e cólera andam juntas em termos de conteúdo.
Na forma, a conceituação espacial é possante. As paredes móveis desse edifício “bem-assombrado” são prenhes de fendas que giram e levam a outros lugares num estalar de dedos, sejam eles descritivos ou abstratos. E sempre que possível a cenografia de Carla Berri e Moraes, outra feliz dobradinha, deixa à vista os mezaninos laterais onde estão posicionados os instrumentos e os atores-músicos e músicos-atores. Abaixo deles, as araras com os figurinos conotam de vez o teatro por dentro. O desenho de luz de Marcelo Quinderé valoriza tons lisérgicos ou hiper-realistas. Quando casados aos vídeos dos irmãos Vilarouca, banhados de luz ou de sombra umedecida, como diz uma personagem, os corpos pincelam quadros cênicos com aquela assinatura Armazém que mora nos detalhes e vibra o que se vê com o que se escuta. Seu espetáculo de passagem é dotado de senso artesanal e prognostica o que expira e o que reaviva nesse coletivo. Como no ciclo da larva e da borboleta no casulo: dói e dá asas.
(2 de abril de 2011)
Extraído do site Teatrojornal
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FOLHAWEB
14-Junho-2011
O que fica depois da coisa toda acabar
''Antes da Coisa Toda Começar'' conduz o público à ante-sala particular da memória
Adriana Ito
Antes do espetáculo começar, um ator se posiciona a um canto do teatro e fica a observar a plateia, que termina de se acomodar no Ouro Verde. É o Espectro do Ator, interpretado por Ricardo Martins, que vai introduzir o público em seu universo particular e que também será conduzido pelo desenrolar da trama. O ator contempla o teatro cheio, e, nesse momento, os espectadores é que são os fantasmas, imagem antiga resgatada de sua memória.
E de sua memória surgem mais do que imagens; há reflexões sobre tudo aquilo que se esvaneceu no tempo, mas que permanece lacrado em alguma ante-sala do passado. É desse vão no tempo-espaço que ele resgata os três personagens centrais da trama: a jovem Zoé (Patrícia Selonk), o ator Téo (Thales Coutinho) e a cantora Léa (Rosana Stavis), todos ligados, de algum modo, à morte (que aliás é personificada na figura de uma enfermeira e de uma puta, vividas por Simone Vianna).
''Antes da Coisa Toda Começar'' traz todas as marcas registradas do grupo Armazém, desde a cenografia móvel e que trabalha com diferentes altitudes até a forma como os atores proferem o texto, as marcações e as falas cheias de pequenas e deliciosas surpresas. E é o Armazém principalmente ao buscar uma nova adequação para tudo isso, subvertendo as regras. Por esse lado, a música executada ao vivo pelos próprios atores a princípio pode até causar certo estranhamento, mas depois se justifica por estabelecer um diálogo entre os fragmentos sem descambar no musical.
E as cenas são isso: fragmentos, mesmo. Porque o passado, o presente e o futuro não precisam respeitar uma linha quando não se está preso ao espaço. As histórias também se intercalam sem se interligarem (pelo menos não diretamente), e o texto preciso de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes (que também é o diretor) não deixa brechas para essa coisa toda desandar.
A direção de Moraes, juntamente com o trabalho dos atores, mais uma vez contribui para que a peça seja muito mais do que uma reunião de histórias que dialoga com o fazer teatral.
Patrícia Selonk brilha com a intensa Zoé, jovem inebriada de vida que se lança ao abismo de um amor proibido. Thales Coutinho mantém sua atuação densa e sabe imprimir a dose certa de comicidade no ator frustrado Téo. Também não dá para não se render a Ricardo Martins (o mesmo do Espectro) no papel do carismático travesti Rufus.
Já Rosana Stavis está perfeita como Léa, a cantora que se recupera de uma tentativa de suicídio e luta para não perder essa vontade de morrer. E se eu senti falta de Simone Mazzer não foi por falha de Rosana, e sim porque me pareceu que o papel havia sido criado para e moldado por Simone.
Depois de uma hora e meia de espetáculo, quando o Ouro Verde fica às voltas apenas com os próprios fantasmas e as pessoas retornam às suas rotinas (cada uma carregando a sua ante-sala particular do mundo), a gente percebe que tudo o que existia antes era invenção e memória. E, depois dessa coisa toda começar, se ainda não há a memória, só nos resta inventar.
E de sua memória surgem mais do que imagens; há reflexões sobre tudo aquilo que se esvaneceu no tempo, mas que permanece lacrado em alguma ante-sala do passado. É desse vão no tempo-espaço que ele resgata os três personagens centrais da trama: a jovem Zoé (Patrícia Selonk), o ator Téo (Thales Coutinho) e a cantora Léa (Rosana Stavis), todos ligados, de algum modo, à morte (que aliás é personificada na figura de uma enfermeira e de uma puta, vividas por Simone Vianna).
''Antes da Coisa Toda Começar'' traz todas as marcas registradas do grupo Armazém, desde a cenografia móvel e que trabalha com diferentes altitudes até a forma como os atores proferem o texto, as marcações e as falas cheias de pequenas e deliciosas surpresas. E é o Armazém principalmente ao buscar uma nova adequação para tudo isso, subvertendo as regras. Por esse lado, a música executada ao vivo pelos próprios atores a princípio pode até causar certo estranhamento, mas depois se justifica por estabelecer um diálogo entre os fragmentos sem descambar no musical.
E as cenas são isso: fragmentos, mesmo. Porque o passado, o presente e o futuro não precisam respeitar uma linha quando não se está preso ao espaço. As histórias também se intercalam sem se interligarem (pelo menos não diretamente), e o texto preciso de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes (que também é o diretor) não deixa brechas para essa coisa toda desandar.
A direção de Moraes, juntamente com o trabalho dos atores, mais uma vez contribui para que a peça seja muito mais do que uma reunião de histórias que dialoga com o fazer teatral.
Patrícia Selonk brilha com a intensa Zoé, jovem inebriada de vida que se lança ao abismo de um amor proibido. Thales Coutinho mantém sua atuação densa e sabe imprimir a dose certa de comicidade no ator frustrado Téo. Também não dá para não se render a Ricardo Martins (o mesmo do Espectro) no papel do carismático travesti Rufus.
Já Rosana Stavis está perfeita como Léa, a cantora que se recupera de uma tentativa de suicídio e luta para não perder essa vontade de morrer. E se eu senti falta de Simone Mazzer não foi por falha de Rosana, e sim porque me pareceu que o papel havia sido criado para e moldado por Simone.
Depois de uma hora e meia de espetáculo, quando o Ouro Verde fica às voltas apenas com os próprios fantasmas e as pessoas retornam às suas rotinas (cada uma carregando a sua ante-sala particular do mundo), a gente percebe que tudo o que existia antes era invenção e memória. E, depois dessa coisa toda começar, se ainda não há a memória, só nos resta inventar.
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