CRITICA "O DIA EM QUE SAM" - REVISTA CULT
O que ainda mantém o homem vivo?
"O dia em que Sam morreu" empenha o vigor que a palavra pode exalar no teatro para tratar da obsolescência do homem
por Welignton Andrade
“Quem não pretende um Éden terreal?
Mas e as circunstâncias, afinal?
Elas se negam a corresponder”.
Mas e as circunstâncias, afinal?
Elas se negam a corresponder”.
Bertolt Brecht, A ópera de três vinténs.
Escrito por Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, o texto de O dia em que Sam morreu– o mais recente espetáculo da Armazém Companhia de Teatro, em cartaz no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação – trata, de acordo com as palavras do próprio grupo, “da sensação geral de que algo não vai bem”, transformando uma questão fugidia e espinhosa como essa em um jorro de sinceridade dramatúrgica das mais envolventes na atual temporada teatral paulistana. O que de início chama a atenção é a grande capacidade que a peça tem de olhar para um conjunto de assuntos que vem assolando nossa famigerada consciência crítica, de um modo absolutamente direto, franco, sem falsos dilemas. O texto – denso, articulado, penetrante – recusa qualquer tentativa de soar engenhosamente isento, asséptico, frio em suas reflexões bem-pensantes. Antes, ele opta por mexer e remexer no senso comum que nos paralisa para, a partir desse estado de indignação um tanto quanto letárgico do qual dificilmente conseguimos nos livrar, ir nos comunicando aos poucos a ideia de ser possível desenvolvermos um sentimento de vibrante reação a tudo o que está aí. Mas não aquele tipo de reação moralista que invariavelmente deságua na “indignação farisaica” de que nos fala o professor Antonio Candido. Certamente que não. A criação dramatúrgica de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes nos convida a reagir contra o esgotamento da cota de humanidade que se pensava infindável no homem pela via de uma perplexidade embrutecida, sofrida, dolorosa, sim, mas tingida sutilmente pelas cores do lirismo e da esperança.
Em tempos desencantados como os nossos, em que uma mentalidade mediana – vaidosa por ser assaz pragmática e combater tão “inteligentemente” as velhas ideologias – insinua-se em todas as esferas do convívio social, tendendo a sublimar a vida real por meio de uma franca tendência à abstração e ao absoluto, O dia em que Sam morreu apresenta a grande capacidade de confrontar o espectador com uma série de indagações com as quais ele se depara normalmente, levando-o a examiná-las de acordo com uma inteligência e uma sensibilidade francamente autônomas, cultivadas por seu próprio espírito crítico – nobre tarefa à qual o bom e velho teatro ainda é capaz de se lançar. Isto é, texto e encenação nos fazem acreditar que o fenômeno teatral constitua ainda um poderoso processo que leve o espectador, atravessado pela experiência da cena, a se tornar membro de uma sociedade de homens que sintam e pensem mais e melhor.
O foco da peça são algumas das transfigurações pelas quais tem passado o corpo humano na “sociedade industrial-gerenciada” em que nos transformamos, “de natureza essencialmente burocrática e motivada por um materialismo apenas levemente mitigado por preocupações verdadeiramente espirituais ou religiosas”, de acordo com o diagnóstico de Erich Fromm emThe sane society. Assim, o texto põe em cena seis personagens muito bem construídos às voltas com dilemas existenciais e éticos surgidos a partir da relação dissociada que eles estabelecem, em maior ou menor grau, com seus corações e com suas mentes. Ou com o coração e a mente dos outros. Para dois deles, órgãos vitais estão parando de funcionar: o coração da juíza aguerrida e o cérebro do velho palhaço. Já o coração e a mente do jovem instrumentador cirúrgico se excitam demais, a ponto de quererem levá-lo a cometer um ato extremo, “cheio de som e fúria”. Para a garota de programa que é filha de um clown demente – o corpo servindo a ambos como instrumento, para ele, lúdico; para ela, lúbrico –, os homens estão aos pedaços. Por fim, há os dois médicos que, embora muito seguros e articulados, não costumam encarar a vida o tempo todo de cara limpa. Um, deslizante entre dois afetos. O outro, sempre crispado diante do novo e lúcido cinismo que acomete a plenos pulmões aqueles que transitam com invejável desenvoltura por estruturas de mando e de poder.
A direção de Paulo de Moraes consegue com notável inventividade converter as ideias que fervilham no campo dramatúrgico em símbolos de uma teatralidade das mais rascantes, acentuada de modo todo especial pela trilha sonora executada ao vivo. Tudo leva a crer que a palavra falada hoje, proferida em ambiente acusticamente harmonioso, esteja fadada ao fracasso por demandar de nós um tipo de concentração do espírito que não nos diz respeito mais. Assim, as falas dos atores precisam constantemente ser emitidas em ambiente sonoro distorcido e amplificado, a fim de se relacionarem com o modo usual da cognição contemporânea. Errática diante daquilo que consegue comunicar e contaminada por um estado permanente de espanto, a palavra aqui precisa se deixar acompanhar pela pulsão do rock. Não é inadequado afirmar, então, que O dia em que Sam morreu se configura em um recital ruidoso, alvoroçado, desarmônico.(Convém destacar na condução dessa atmosfera tão especial o ótimo trabalho dos músicos, liderados pelo maestro Ricco Vianna).
Os atores da Armazém Companhia de Teatro desempenham seus papéis com uma tensão criativa que plasma muito bem seus corpos (a preparação corporal é de Frederico Paredes e Rafael Barcellos) e suas vozes (Jane Celeste Guberfain é a responsável pela preparação vocal). Jopa Moraes constrói o instrumentador Samuel de modo muito convincente ao transformar a retórica um tanto quanto cerebral do personagem em expressão de pura enervação. Patrícia Selonk confere a Samantha uma intensidade dramática notável. Trata-se de uma atriz a quem Dioniso parece jamais abandonar em cena. Como juíza, saem de sua boca asseverações éticas incontestáveis; como uma mulher alquebrada pelo coração em processo de falência, sobram-lhe dúvidas, potencializadas pela máscara patética. Marcos Martins imprime ao ex-palhaço Samir uma aura de comicidade construída por meio de um pungente lirismo.O intérprete domina com rigor a execução física do personagem, sabendo explorar muito bem suas nuances burlescas, poéticas, ridículas. Otto Jr. transforma o Dr. Benjamin em uma figura fascinante – detestável pela arrogância que o afasta de nós, atraente pelo pragmatismo que nos aproxima dele. Lisa Eiras empresta uma carga de sensualidade muito bem calibrada a Sofia, explorando diversos matizes em sua interpretação que afastam o risco de a personagem se cristalizar em um tipo. Por fim, Ricardo Martins se desincumbe muito bem do Dr. Arthur, conferindo-lhe uma empatia muito natural, seja por ele soar bastante razoável, seja por demonstrar ter um bom coração – que, inclusive, o faz interceder tão naturalmente a favor de engenheiros presos e juízas doentes.
A cenografia, concebida pelo próprio diretor, em parceria com Carla Berri, é simples e funcional, transformando constantemente o palco em um espaço de dispersão – o que potencializa os constantes focos de tensão. A iluminação de Maneco Quinderé pontua muito bem a atmosfera confessional a que se lançam os atores com acento expressionista, contrastada, por sua vez, pelos figurinos naturalistas concebidos por Rita Murtinho. Os bonecos confeccionados por Ulisses Tavares e Paulo Emílio Luz, que reproduzem corpos humanos fora de combate, têm um poder de sugestão sobre a cena dos mais impressionantes. Idem para as máscaras macabras dos palhaços que acompanham o enterro de Samir, responsáveis por uma plasticidade aflitiva e inquietante. Sem sombra de dúvida, essa é a cena mais bela do espetáculo. Se o conceito de beleza puder corresponder também à expressividade plástica do fantasmagórico e do grotesco, como, por exemplo, em Goya.
A estrutura cíclica de O dia em que Sam morreu – a peça aponta para um novo começo a cada vez que um dos “Sam” morre – está ligada mais propriamente ao universo do mito, de onde emerge por duas vezes em cena a figura de Abraão, o patriarca das três grandes religiões monoteístas, incumbido de estabelecer a aliança entre o mundo terreno e a esfera divina. Entretanto, essa camada mítica no plano da dramaturgia (com quem o super-homem pós-moderno há de firmar uma nova aliança? que novas normas morais e políticas estão sendo instituídas por esse homem tão potente a partir de sua fé indestrutível no racionalismo científico?)parece se desdobrar em uma outra camada, de corte épico, proposta pela encenação, que transforma a repetição narrativa em objeto de reflexão histórica (por que o sono da abundância científica e tecnológica à qual nos entregamos diariamente tem produzido tantos pesadelos éticos e morais?).
“Que sacrifícios fazer e em nome de que alianças?” pergunta o espetáculo, propondo uma série de imagens muito contundentes que evocam o mundo dos ritos sacrificiais, cindidos aqui entre o sagrado e o profano. De um lado, por exemplo, há os três corpos estilizados que descem do urdimento e são acolhidos por atores em pose de Pietá. De outro, os antigos rituais de imolação dão lugar aos novos procedimentos cirúrgicos, nos quais tanto faz implantar uma válvula de vaca ou de porco no paciente “sacrificado”. Ou em que um órgão extirpado de um paciente morto pode prosaicamente se transformar em presente de aniversário de um ente querido.
Enquanto um novo corpo surge a partir do uso de novos fármacos, a velha consciência vai se tornando obsoleta em virtude de tantos anestésicos que a rodeiam. Mas o espetáculo termina apontando para uma imagem mais positiva do que essa, ao converter a distopia do indivíduo despedaçado na utopia da integridade humana, contrária à indiferença. É bem verdade que a cena em que Samantha e Sofia discorrem sobre isso ocorre em um cemitério. Mas não se pode esquecer de que prestar tributo aos mortos é cultivar a memória dos que já foram, a fim de preservar o passado e poder transmiti-lo – como promessa e aliança – aos que ainda estão por chegar.
O dia em que Sam morreu
Onde: Teatro Anchieta, Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque
Quando: até 23/11. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 18h.
Quanto: De R$ 12 a R$ 40.
Info: (11) 3234-3000.
Onde: Teatro Anchieta, Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque
Quando: até 23/11. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 18h.
Quanto: De R$ 12 a R$ 40.
Info: (11) 3234-3000.