quinta-feira, 11 de novembro de 2010

ACASOS ACONTECIMENTAIS

Tropas alemãs tomam Budapeste

ABSURDOS

“Não existe nenhuma fantasia que possa superar
 os acontecimentos ou histórias da vida real”.

Gabriel Garcia Marques
[em entrevista a respeito do livro “Cem Anos de Solidão”

Praticamente todas as noites, após o jantar, nos encontrávamos para conversar no refeitório da fazenda “Amália”. Engenho açucareiro localizado na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, era um complexo formado por plantações de cana, usina de açúcar, fábrica de massa de tomate e de ácido cítrico. Recém contratado, fui juntar-me ao grupo de engenheiros e técnicos que trabalhavam no local. Havia profissionais da Itália, Bélgica, Rússia e também da Hungria. Este último chegara semanas antes que eu, falava pouco português e com muita dificuldade. Ele era alto, magro, rosto de linhas bem definidas. Usava um lenço em volta do pescoço; mesmo encurvado pelos anos, seu porte era elegante. Sendo os últimos a chegar, ficamos amigos logo no início, conversávamos, mas era pouco o que eu podia entender. Nessa noite contávamos coisas difíceis de acontecer e mais ainda de acreditar. Eu lembrei um encontro inesperado, absurdo, que tive certa noite numa rua perto da rodoviária do Rio de Janeiro. Caminhando em sentido contrário, ainda oculto pela pouca visibilidade, tive a impressão de “conhecer” a pessoa que se aproximava. No momento de cruzarmos, quase ao mesmo tempo, ele falou: – Rolando? E eu disse: – Tamayo? Pois é, éramos os tais! Tínhamos estudado na mesma escola primária há 18 anos! Imediatamente procuramos um barzinho.
A noite continuava alegre, animada pelo “parloteo” colorido, o calor humano do tinto, o entusiasmo das lembranças. Em outra mesa, um pouco apartada da nossa, estavam conversando dois rapazes que tinham chegado da sede da empresa um dia antes, para coletar informações estatísticas ou algo parecido. Foi a vez de Alain, o Belga. Ele era o responsável pelas oficinas mecânicas (somente para transportar a cana eram mais de 100 tratores, sem contar a maquinaria da usina). Era de estatura mediana, forte, rosto arredondado e mancava da perna direita, dando a impressão de ser mais curta. Contou que trabalhando numa plantação no antigo Congo, (logo depois da guerra) durante um fim de semana, viajava de Jeep para a cidade mais próxima, quando parou na estrada para dar carona a um senhor.
No caminho, no meio da conversa, o senhor que era inglês, perguntou: “O que você fez durante a guerra?” Um tanto receoso mesmo após 25 anos, Alain achou que já podia falar a respeito e contou que tinha atuado junto à Resistência Francesa. Continuaram o caminho. Aí o inglês perguntou de novo: “Em que lugares agiam? Como arranjavam alimentos? Armas? Munição?”... Alain disse que, periodicamente, em diferentes lugares e a determinada hora da noite, surgia um avião e soltava em pára-quedas remédios, comida, munição etc. Continuaram a viagem, os dois sem falar nada. Pouco antes de chegar ao povoado, o inglês começou a assoviar, baixinho, uma música. Alain ao perceber e relembrar a melodia, parou o carro bruscamente, olhou para o inglês que emocionado lhe disse: “– Eu era o piloto do avião”.Durante a guerra, a rádio BBC de Londres transmitia diferentes programas musicais, nos quais, em determinado dia e hora, algumas músicas eram a chave que indicava o lugar, dia e hora em que um avião entregaria a mercadoria.
A essa altura o grupo todo falava em voz alta e ao mesmo tempo, em português e no idioma de cada um. O mais entusiasmado era Maikos, o húngaro. Era tão grande a algazarra, que ninguém percebeu no meio da confusão, um dos rapazes de São Paulo chegando perto da nossa mesa e falando, trocara algumas palavras com Maikos. Logo foram os dois conversar num canto do refeitório. Não passou muito tempo e depois de uma animada conversação, o Maikos, com a cabeça entre as mãos, inclinado, soluçava em silêncio. A figura solitária e trêmula transmitia tristeza e respeito. Ao perceber, todos ficamos calados e surpresos. Aí, o rapaz chegou perto e disse: “Não foi possível deixar de ouvir a conversação de vocês, e principalmente a do Sr. Maikos que falava em húngaro, idioma que eu conheço. Na conversa que tivemos ficamos sabendo que nós dois moramos em Budapeste, no mesmo bairro, na mesma rua. Na realidade, éramos vizinhos... Durante a guerra ele ficou sozinho porque a esposa morreu num bombardeio. Eu também fiquei sozinho, perdi meus pais e irmãos, perdi a minha família. Tive que viver num acampamento da Cruz Vermelha para refugiados da guerra junto de muitas crianças, até ser adotado por uma família brasileira.” O Sr. Maikos me disse, que algumas vezes, ao sair de casa para ir ao trabalho, eu já estava na rua brincando. Ele lembrou que chegava perto e mexia nos meus cabelos...

J. Rolando Oliveira Coronado

Extraído do livro "Pequenos Milagres e Outras Histórias" (Grupo Galpão, Editoras Autêntica e PUC-MINAS, BH, MG, 2007.


2 Comentários:

Às 11 de novembro de 2010 às 12:58 , Blogger ClaudiodaCosta disse...

Maurice, memórias importantes que nos dão o sentido de comunhão, de irmandade. Me lembra uma frase, "o sofrimento ilumina", nos torna mais humanos e portanto, menos egoistas. Lindo!
bjs.

 
Às 11 de novembro de 2010 às 14:14 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

É Claudinho. Esse texto de J.R. Oliveira Coronado é pura emoção e traz um profundo sentido humano. Postei aqui porque acho que é uma das coisas mais belas que li nos ultimos anos. beijo.

 

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