OUTRA CRITICA SOBRE "ANTES DA COISA TODA"
Thales Coutinho (Téo), Simone Mazzer (Léa), Patrícia Selonk (Zoé) e Ricardo Martins (Espectro) Foto: João Gabriel Monteiro |
POR ONDE COMEÇAR?
Crítica da peça Antes da coisa toda começar, da Armazém Cia. de Teatro
Edélcio Mostaço
Por onde começar? – um dia perguntou-se Roland Barthes, tentando indicar aos jovens que iniciam uma pesquisa possíveis percursos a serem trilhados. Ao longo do texto ele distribui preciosas dicas para ajudar novatos a não sucumbir às muitas e muitas tentações – quase inevitáveis, nestes casos – quando se quer abraçar o mundo com as mãos. Nos jovens, ambição e descontrole costumam ser desmesurados.
Antes da coisa toda começar não é uma pesquisa de linguagem, embora tenha demandado à Cia. Armazém longos laboratórios de investigação – o que é, de saída, a proposta de não dormir sobre os louros conquistados. Esta nova criação está organizada em torno das possibilidades existenciais abertas à vida de três jovens que se interrogam sobre seus limites. A dramaturgia leva a co-assinatura de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, dupla que já testou suas possibilidades de escritura conjunta em ocasiões anteriores. O que confere ao trabalho – uma estruturação de ações criada em colaboração improvisacional com o elenco – o feitio de coisa de palco; ou seja, um desapego à noção corrente de texto e um investimento rente à cena, um apoio de palavras que, medidas e meditadas, não é simples compilação.
Isso não quer dizer que o texto seja menos eficiente; ao contrário, visa destacar que não detêm cacoetes, deslizes, elucubrações ou tempos mortos; que esbanja desenvoltura e sabe extrair das sonoridades alguns momentos de poesia. Texto e encenação, nascidos juntos, constituem um produto cênico orgânico – como todo teatro deveria ser, aliás.
Afinal, do que se trata? São três histórias, três personagens centrais: um ator em crise, uma cantora que tentou o suicídio e uma garota apaixonada. Nada há de muito extraordinário nelas, a não ser o fato de que cada qual, a seu modo, está começando, preste a começar ou a recomeçar alguma coisa, no limite entre morrer e voltar a viver. Ou seja, Eros e Thanatos deambulam pela cena como sombras inspiradoras, bem como Apolo e Dioniso, extremos simbólicos reconhecíveis não apenas nas situações criadas como, especialmente, nos pontos distais onde cada uma das personagens toca em algum momento de sua trajetória.
Antes que adentrem o palco, este é ocupado por um ator que, em seu desamparo, se pergunta pelo teatro perdido, pela ficção que já não mais existe, pelo mistério que significa encarnar uma personagem. Hamlet meio ridículo, Édipo meio capenga, este ator é, como as demais criaturas, também um arquétipo e um paradoxo que interroga o público não apenas sobre a arte de representar como, em igual medida, a arte de viver a vida. Não como ela é (aquele naturalismo às vezes sórdido que torna tudo chato e rasteiro), mas como deveria ser (ah! os sonhos, que belas quimeras nascem de suas entranhas…). Fecha-se assim o círculo da proposição: por onde começar? Pelo teatro, ora pois.
E o teatro praticado pela Armazém – Paulo de Moraes à frente – é decididamente teatralista, dilatado, pletora de signos que nunca são simples ou unívocos. Se as três personagens nada possuem de extraordinário o mesmo não se pode dizer do contexto onde vicejam: uma cenografia surpreendente, uma iluminação de raro apuro sensual, um jogo cênico que é surpresa constante e cujas modulações visam desestabilizar as certezas do espectador. É na cena, portanto, que a espessura vivencial das criaturas nasce, é adubada e onde as metáforas se materializam para ganharem força e significação.
Eis um exemplo: Léa é a cantora que tentou se matar e agora amarga, na maior parte de suas cenas, a convalescença num hospital. Frustrada, melancólica, oscilando entre os impulsos de viver e morrer, ela se interroga sobre o significado de sua existência. No auge de uma dessas passagens ela canta – quase estridente, em seu limite, I am the Walrus.
Você não lembra mais dessa canção? Seria longo resumir todas suas implicações, razão pela qual remeto os interessados à Wikipedia. Apenas recordo que: I am the Walrus é uma música dos Beatles criada na ocasião em que circularam rumores sobre a morte do quarteto, e integra o filme The Magical Mystery Tour. A letra evoca monstros e alude a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (uma das montagens da Armazém), donde seu viés nonsense e espalhafatoso. E Léa, como qualquer outro ser humano, também deseja uma viagem que seja mágica e repleta de felicidade, um país coalhado de maravilhas. A cena nasce, portanto, do entrelaçamento destas muitas superposições. Símbolo grotesco, imagem de horror, fundo de espelho invertido, são várias as conotações possíveis de serem aqui surpreendidas, num instante em que, primando por refinado sentido de teatralidade, ela se imposta como metadiscurso de si mesma, ranhura performática sangrando sobre a pele que recobre corpo e consciência. Vivida por Simone Mazzer no auge de sua aparição no espetáculo, a cena não poderia ser interpretada por nenhuma outra pessoa, dadas as íntimas conexões existentes entre criadora e criatura, artista que vem há anos dando o melhor de si às montagens da Armazém.
Esta, assim como outras passagens, jogam o espetáculo num abismo – naquele sentido de crise entre o real e o irreal, o vivido e o desejado, o sujeito do discurso e o sujeito do desejo, através de formas circulares que vão e voltam, rateiam e engrenam, insistindo de algum modo nos temas nietzscheanos desencadeados em torno de Zaratustra.
Este íntimo liame entre a existência de cada um dos intérpretes e as personagens que fazem circular torna Antes da coisa toda começar um espetáculo de generosas proporções, vincado por inusitada conexão entre teatro e vida, ali onde o projeto, a vontade, a falha, a desistência borbulham num espaço indiferenciado.
A Armazém não seguiu as recomendações de Barthes. Embebedou-se com suas pulsões, recusou as fórmulas, os achados, para mergulhar no fundo do espelho de si mesma. Certa apenas de que a vida, antes da coisa toda começar, deve ser invenção.
Referências bibliográficas:
BARTHES, Roland. Por onde começar? in: O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos; tradução Mario Laranjeira – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. – (Coleção Roland Barthes). p. 173-186.
Critica extraída do site Questão de Crítica http://www.questaodecritica.com.br/2010/11/por-onde-comecar/
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