terça-feira, 29 de março de 2011

CRITICA DE "ANTES" NO ESTADO DE SÃO PAULO

O Ator Ricardo Martins em "Antes da Coisa Toda Começar. Foto: Mauro Kury


POÉTICA REFINADA DA CIA. ARMAZÉM

Fiel à sua vocação de vanguarda, novo espetáculo do grupo prima pela imaginação e pelas atuações vigorosas

29 de março de 2011

Mariangela Alves de Lima - O Estado de S.Paulo

Há quase um quarto de século, a Armazém Companhia de Teatro se inscreve na linha de frente do nosso teatro. Outros grupos paranaenses deixaram as cidades de origem à procura da dimensão metropolitana, mas esse coletivo londrinense, agora com sede no Rio, parece ter conservado ao longo de mais de duas décadas uma afinidade singular com o sentimento de exclusão que a um só tempo oprime e desafia a vida artística provinciana. Antes da Coisa Toda Começar é em grande parte uma fala poética cujo tema central é um isolamento do criador, apartado da vida e das emoções cotidianas em razão de uma sensibilidade exasperada. É um assunto que a arte de vanguarda, de modo geral, dá por sabido ao elevar ao primeiro plano os dilemas da formalização. No texto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, as personagens de três narrativas quase insubstanciais, em razão da descontinuidade, derivam de um narrador prolixo, mais antiquado do que intemporal. Estão presentes e têm uma atuação corporal vigorosa as figuras dessas histórias, no entanto a fragmentação ou incompletude de falas e ações lembra que ainda não estão prontas, que estão sendo geradas a partir de um gabinete, cuja perspectiva vai se aprofundando ao longo do espetáculo.
Definido como um espaço mental onde são desnecessários os vínculos com o realismo, o espetáculo dirigido e cenografado por Paulo Moraes começa com uma referência ao bufão da cultura flamenga e ibérica, signo da marginalidade artística que Michel de Ghelderode e Ramón del Valle-Inclán chamaram de volta ao teatro do século 20. Sentencioso, ainda recoberto pelos farrapos do passado cortesão, o bufão é também indício da melancolia que permeia a imaginação do grupo. O desejo de morte, a paixão incestuosa e a arte que se dilacera nos combates mesquinhos da vida cotidiana são pontos no desenho de uma trama tanto pictórica quanto verbal. As personagens falam, e às vezes falam demais, mas o modo como se movimentam, as atitudes corporais que as definem e as caracterizações fortes dos figurinos se sobrepõem ao peso dos diálogos. Dois amantes precariamente suspensos sobre o vazio, por exemplo, dão o recado sem precisar recorrer ao fraseado das paixões contrariadas. Do mesmo modo, um artista imobilizado por amarras dispensa considerações verbais sobre a dificuldade de manter-se fiel à vocação e íntegro no ofício.
Certamente, os anos de aperfeiçoamento técnico dos atores e dos recursos da cena permitem agora ao grupo diluir em uma atmosfera original as fontes utilizadas para a construção do espetáculo. O rock do século 20, a pintura e a dramaturgia flamengas, os sonetos renascentistas e a categoria do grotesco que recobre esse amálgama de um modo sutil não se apresentam como meras citações de uma civilização exaurida. São, antes, vivências de um repertório que o grupo estima e que a encenação domina. O sal da ironia tempera com parcimônia as representações da cantora e do ator, com moderação suficiente para distinguir essas figuras das paródias.
Para quem conhece o grupo de outras temporadas é notável a relativa serenidade corporal desse trabalho, uma vez que em espetáculos anteriores o fascínio pela interpretação acrobática dominava muitas cenas. Há coisas tão bem sabidas que não é mais preciso exibi-las. Grupos e companhias capazes de articular uma poética e refinar ao longo do tempo os meios de expressá-la acabam por definir uma assinatura, embora nem sempre o façam de modo consciente. A poética da Armazém Companhia de Teatro, reafirmada nesse espetáculo, valoriza a imagem cênica. O desgaste e o tom sépia da vegetação outonal e a pintura corroída de um salão abandonado formam o prólogo e a moldura significativa de Antes da Coisa Toda Começar.
Também os textos recolhidos ou produzidos pelos autores têm aqui o formato da retórica passadista e parecem sofrer a tentação da rima do ritmo uniforme. São pronunciamentos de escasso peso dialógico uma vez que, nesta peça, são projeções do personagem autor e, portanto, manifestações de um psiquismo livre das normas e da racionalidade. Poderiam ser pronunciados de modo mais coloquial e em tom mais baixo, sobretudo quando se referem aos estados anímicos dos artistas personagens. Enfáticas, em geral altissonantes, as locuções parecem competir com as imagens. Talvez se tornassem mais insólitas e inquietantes se a estranheza do enunciado poético fosse se revelando aos poucos sob o disfarce da entonação coloquial. 

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