segunda-feira, 19 de março de 2012

OS 80 ANOS DE GRETEL

(Sul do Brasil. Final da década de 30. Uma família de origem alemã em torno da mesa do café da tarde em que se comemoram os 80 anos da matriarca avó Gretel.)

VOZ FEMININA OFF: “Des Abends blau und braune Farben...Verflossen ist das Gold der Tage...” [1]  

VÓ GRETEL: Agradeço as alegrias que tive nestes meus oitenta anos. Agradeço à vida. Eu devo tudo a Deus.

HANS: E um império pro dono do empório! (Ri)

ELGA: Hans! Não no aniversário dela!

VÓ GRETEL: Fiz o parto de todos os filhos do dono do empório e nunca cobrei um tostão!

HANS: Gretel e o absoluto desprendimento das coisas! (Ri)

VÓ GRETEL: Gelassenheit[2], Hans! Adesão total a Deus!

SCHLACHTA: (Pedindo que lhe sirvam) O salame...

MANFRED: Muito bem dito, Gretel. Quem possui a Deus, deveras possui a eternidade!

HANS: Bode velho.

MANFRED: Hans, o azedo.

ELGA: Senhores! É uma tarde festiva! Deixemos as desavenças de lado e nos abracemos como amigos. Vamos recordar os bons tempos quando os nossos ainda estavam no Brasil!

SCHLACHTA: (Pedindo que lhe sirvam) O picles...

VÓ GRETEL: Nada de recordações, Elga! Não é uma boa idéia. Não posso pensar no passado sem me lembrar de Oskar.

MANFRED: Que inteligência penetrante! Escreveu livros e livros sobre, como se chama mesmo?

VÓ GRETEL: Malacologia[3]... Oh, não! Cá estou eu a relembrá-lo!
MARIE: (Entrando na sala trazendo o bolo) Um bolo especial para vó Gretel!!!

(Todos aplaudem)

MANFRED: Bravo!

MARIE: Egon mandou farinha da Alemanha!!!

VÓ GRETEL: Egon! Meu Egon! Sempre tão generoso!

ELGA: Ele é o retrato perfeito do tio Osk...

MANFRED: Marie, diga-me a verdade.

MARIE: Qual delas? As mentiras são tantas.

MANFRED: Por que não se casou com Egon, minha cara?

MARIE: Ora... Egon e eu temos o mesmo sangue!

ELGA: Mas apaixonado por você...

MANFRED: Se Marie não o tivesse desdenhado, hoje estaria casada e com filhos, e nosso bom Egon não teria ficado melancólico e Oskar não teria voltado para Alemanha!

HANS: (Malicioso) Marie! Marie ama a vida com intensidade...

MARIE: (A Hans, num sussurro, ríspida) Cale-se!

HANS: Minha cunhada merece coisa melhor do que um fabricador de esquifes.

MANFRED: Marceneiro!

VÓ GRETEL: (Atribulada) Basta deste assunto!!!

SCHLACHTA: (Pedindo que lhe sirvam) O salsichão...

VÓ GRETEL: Meu bem, quando chegou esse abençoado trigo?

MARIE: O carteiro trouxe hoje de manhã.

ELGA: Martin é um anjo.

HANS: Um anjo que vive de fogo! (Ri)

MARIE: Egon teve o capricho de colocar a farinha numa caixa que trazia impressa a receita do preparo do bolo! Leite, quatro ovos, gema e clara, uma colher de chá de fermento, uma pitada de sal, e duas colheres de sopa mel de abelha! Não é incrível! É justamente a minha receita!

ELGA: Viu só, Herr Manfred? Agora ela elogia o pobrezinho!

MANFRED: “Omnes creaturae sunt unum purum nihil”[4], minha cara!

HANS: (A Manfred) Você é um blefe.

MARIE: Gosta de seu bolo de aniversário, vovó?

VÓ GRETEL: Digno para celebrar a vitória de uma vida!

ELGA: (Estragando o clima) Mutter sempre sabe o que falar nessas ocasiões, não é?

HANS: Comentário idiota...

MANFRED: Tanto quanto o seu.    

VÓ GRETEL: (A Marie) O que Egon disse, querida? Há notícias de Oskar?

MARIE: Egon não disse nada. Só enviou a encomenda.

HANS: Egon, o pateta!

SCHLACHTA: (Pedindo que lhe sirvam) O chá preto...

VÓ GRETEL: (A Elga referindo-se a Schlachta) Quem o convidou?!

ELGA: Hans insistiu que ele viesse.

MANFRED: Convido todos a cantar em homenagem aos oitenta anos de nossa estimada Gretel Schiele! (Cantam)

VÓ GRETEL: Parem com isso! Parem!

MARIE: Agora vamos todos provar o bolo! Faça um pedido, vó Gretel!

VÓ GRETEL: (Pensa e corta) Assim seja!

MANFRED: Posso saber qual foi o seu pedido?

VÓ GRETEL: Ora, que indiscrição, Manfred!

HANS: Espantalho!

MANFRED: Por que não experimenta trabalhar? Fará bem à sua saúde!

HANS: Elga, onde você pôs meu colt?

ELGA: Ocupem suas bocas, cavalheiros! (Serve pedaços aos dois)

SCHLACHTA: (Pedindo que lhe sirvam) Uma fatia...

(Todos comem o bolo e se deliciam)

HANS: Que bolo delicioso, Marie!

MANFRED: O sabor está realmente sublime!

ELGA: Marie tem mãos de fada...

MARIE: Farinha Alemã! Esse é o segredo!

ELGA: ...Já, eu, não tenho jeito com os doces, não é Hans?

HANS: Você é um desastre com açúcar. (Ri)

SCHLACHTA: (Pedindo que lhe sirvam) Outra fatia...

HANS: Para mim também!

MANFRED: Também vou aceitar, Marie!

VÓ GRETEL: Já que sou a aniversariante, darei ao direito de exagerar!

ELGA: Eu a acompanho, Mutter!

(Todos comem gulosamente)

HANS: Que tal o bolo, Schlachta?

SCHLACHTA: Enjoativo...  

VÓ GRETEL: (Num êxtase) Esse sabor! Sabor do vento nos trigais da minha terra natal... dourados e ondulantes... Quando moça, eu corria pelos campos até cansar, depois me jogava na relva, o peito arfando, olhando interminavelmente as nuvens e suas estranhas formas no céu de cristal azul... Foi numa tarde dourada que eu e Oskar... Éramos naturalmente irresponsáveis... (Tempo) Verflossen is das Gold der Tage...

ELGA: “Foi-se o dourado dos dias...” (Vó Gretel chora)

MARIE: Oh não, Frau Gretel!

VÓ GRETEL: Não sei se estarei viva no próximo inverno...

MARIE: Alegre-se, vamos! Não é hora para tristezas!

(Entra Martin, o Carteiro)

ELGA: Martin!

CARTEIRO: (Resmunga) Esse vento miserável dá punhaladas nas minhas costas! Olá! Boa tarde a todos!

ELGA: Chegou na hora!

CARTEIRO: Parabéns, Frau Schiele! Como não bastasse morarem tão longe, ainda fazem o velho Martin perseguir a jovem Marie com esta carta!

ELGA: A última fatia vai para o bom Martin!

CARTEIRO: (Resmunga) Esta hora eu devia estar morto!

MARIE: Carta? De quem?

CARTEIRO: Desculpe. Esqueci de entregá-la hoje cedo junto com a encomenda. Eu estava atrasado para um compromisso. 

VOZ FEMINA OFF: Foi então li a carta mandada por meu primo Egon.

MARIE: “Estimada prima Marie, tomo a liberdade de lhe escrever estas linhas. Como vão todos aí? Aqui vamos bem. Schwaim continua pacata e amistosa como sempre. O tempo tem sido generoso com a agricultura. Consegui comprar um nova serra com a venda da última safra. Meu caçula começou a freqüentar a escola. Mas, desculpe, estou andando em círculos. Na verdade escrevo para informar sobre a morte de meu velho pai, Oskar Schiele, aos 93 anos, mês passado...”

VÓ GRETEL: Oskar? Morto?!

MARIE: “...Não fiquem tristes. Oskar foi visitado por Deus. Morreu dormindo. Ele sempre dizia que em seus sonhos via-se no Brasil. Seu último desejo era voltar e estar junto de sua única irmã, Gretel, mesmo depois de morto...”

GRETEL: Gott!

MARIE: “Queria que, ao morrer, fosse cremado, e suas cinzas fossem enviadas ao Brasil. Para que seu desejo seja cumprido, remeto, na caixa anexa, as cinzas de meu pai, Professor Oskar Schiele. Que ele descanse em paz! Com estima, sempre teu – Egon...”

(Uma a um olham para o Carteiro que está prestes a dar a primeira mordida no último pedaço do bolo.)


[Fim de cena]


Observação: cena escrita por Maurício Arruda Mendonça baseado em conto enviado no projeto "Conte a sua história" do Grupo Galpão realizado em 2006. É expressamente proibido cópia ou uso do presente texto.


[1] Versos finais do poema “Rondel” (1912) do poeta expressionista austríaco Georg Trakl: “As tardes de azul e marrom tingidas/findou-se o dourado do dia”   
[2] S.f. Resignação.
[3] S.f. Parte da Zoologia que estuda os moluscos ou animais de corpo mole.
[4] “Todas as criaturas são um puro nada”

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