sexta-feira, 24 de abril de 2009

O DIA EM QUE A AVENIDA PAROU

Nos anos 50, Londrina assistiu a uma das demonstrações mais corajosas de amor entre dois jovens completamente diferentes. Quem estava presente na Praça Marechal Floriano naquele domingo de maio jamais poderia imaginar que uma caminhada de poucos passos conseguiria transformar a sociedade londrinense.

Chá das cinco

Dona Hercília estava na porta e beijava cada uma das convidadas que chegava para o chá em sua mansão no Shangri-lá. Nascida em berço de ouro na capital paulista, ela era casada com o Dr. Silveira, um dos grandes advogados de Londrina nos anos 50. Naquela reunião, que contava com a presença de senhoras e moças da sociedade londrinense, dona Hercília se excedia em bom gosto e refinamento, servindo vários tipos de chá inglês, além de “cookies” e “petits fours” para a degustação. Na espaçosa sala de dois ambientes, encontravam-se estrategicamente separadas as senhoras casadas das moças solteiras. E, com voz baixa e anasalada, dona Hercília aconselhava:
– As forças vivas da sociedade, os políticos, a igreja, a polícia de Costumes e Saúde Pública, todos precisam se unir para combater com rigor a doença da prostituição que põe em risco a família londrinense!
E dona Hercília fez uma pausa dramática que dava para ouvir o vai e vem da máquina do jardineiro à distância aparando o gramado da mansão. E a mulher do advogado prosseguiu com fervor moralista:
– Comprem o livro “A Moça e seus Problemas”. É leitura obrigatória nessa idade. Temos de defender nossas meninas nesta cidade depravada!
Enquanto dona Hercília observava a reação de sua platéia de final de tarde, Marilena entrou na sala e foi passando por entre as damas e as moçoilas sem lhes dar pelota. Dona Hercília não gostou nada do comportamento da filha, e disfarçou com falsa polidez:
– Marilena, querida, cumprimente as visitas!
A menina, de dezessete anos, foi de uma franqueza desconcertante:
– Mãe, você sabe que eu detesto os seus chazinhos!
E foi saindo pela porta lateral que dava para o jardim, enquanto dona Hercília a chamava:
– Volte aqui, menina!
Envergonhada pela desobediência da filha, dona Hercília emendou a seguinte desculpa para as convidadas, piscando um olho:
– Ela está naqueles dias...

Mitra

De noite, enquanto o Dr. Silveira estudava um processo-crime à luz do abajur, dona Hercília, afobada, interrompeu o marido para discutir sobre o comportamento reprovável da filha. Reclamou que Marilena estava rebelde e alheia a tudo, tanto que preferiu ficar a tarde toda proseando com o jardineiro Manassés e seu filho, enquanto senhoras e filhas das melhores famílias conversavam sobre assuntos mais elevados. O Dr. Silveira, com aquela calma de advogado traquejado, botava panos quentes:
– Paciência, Hercília. Marilena tem personalidade. Na idade dela eu não dava ouvidos aos conselhos do meu pai, e olhe que o velho era um sábio!
– Viu só, Silveira? Essa menina teve a quem puxar!
O fato é que dona Hercília, uma autêntica paulista de quatrocentos anos, queria o melhor para a filha e faria de tudo para que Marilena se tornasse uma esposa exemplar. Não teve dúvidas. No dia seguinte procurou pessoalmente Dom Geraldo Fernandes. O bispo aconselhou que dona Hercília inscrevesse Marilena no curso para noivas que a igreja e eminentes médicos londrinenses estavam promovendo no Colégio Mãe de Deus. E Dom Geraldo, altíssimo, de batina negra, com gestos eclesiásticos, doutrinava com voz arrastada, pastoreando uma ovelha de seu vasto rebanho:
– Nós pensamos que a senhora fará muito bem em matricular sua filha nesse curso, madame, pois toda mulher deve cooperar com o poder criador de Deus-Pai, aumentando nesta terra o número de filhos e herdeiros no céu!
Durante a fala altamente edificante de dom Geraldo, dona Hercília cometeu a indelicadeza de cochilar, mas foi acordada quando o homem de Deus pronunciou, num grito, a palavra “céu”. Dona Hercília se recompôs. Teve de curvar-se muito para dar um beijo solene no anel do bispo. Chegando à calçada, conferiu as horas nos relógios das torres da Matriz, e foi direto ao Colégio Mãe de Deus cortando caminho pelo bosque.

Chilique

Marilena revoltou-se com a mãe que a matriculara no curso para noivas sem consultá-la, sabendo inclusive que ela sequer tinha namorado, quanto mais um noivo. Dona Hercília tentava acalmá-la dizendo que já estava selecionando moços de boa família para virem conhecê-la em casa, e que, com toda certeza, se encantariam com sua beleza, prendas, finesse e a educação para ser uma perfeita mãe de família. Ao ouvir isso, Marilena teve um acesso de raiva. E, num ímpeto, arremessou um porta-jóias contra a penteadeira estilhaçando o espelho. Mas, nesse momento, já acabara de chegar em casa o Dr. Silveira, a tempo de escutar a discussão das duas. Ele adentrou ao quarto, olhou para a esposa aos prantos, e ordenou à Marilena, que a essa altura se encontrava agachada num canto:
– Amanhã você vai ao curso de noiva.
Marilena fez que sim com a cabeça. Saiu batendo os calcanhares e foi ouvir rádio na sala, fula da vida.

Curso de noiva

Foi uma alegria para dona Hercília ver Marilena adentrar as portas do Colégio Mãe de Deus junto com outras moças casadoiras da sociedade. E, realmente, era uma cena comovente para os pais contemplar aquelas futuras mães acompanhadas de médicos com suas tradicionais roupas brancas. É bem verdade que Marilena ia por último, a contragosto, mais ia. Quando retornava à sua casa, só conversava com o pai, e nada dizia à mãe. Com o passar dos dias, como que por magia, um sorriso floresceu em seus lábios, os olhos ganharam uma cintilância especial. Marilena mal conseguia disfarçar sua felicidade. Para o contentamento de dona Hercília, sua menina agora parecia que estava entendendo o porquê do curso para noivas, e, pelo que tudo indicava, estaria aceitando a idéia de conhecer alguém e casar-se.

Baque

Mas foi numa tarde que dona Hercília descobriu a razão secreta da alegria de Marilena. Foi buscá-la no final da aula do curso sem avisar a filha e não a encontrou nas nas salas do Mãe de Deus. Todas as colegas tinham absoluta certeza de que Marilena não tinha ido embora. Mas foi Ledinha Capolongo quem denunciou o paradeiro de Marilena. Com ironia, quase com desprezo, lascou:
– Por que a senhora não procura Marilena nos jardins da Capelinha?
Terminou de dizer e Ledinha e todas as moças ao redor caíram na gargalhada. Dona Hercília não entendeu nada, e foi se encaminhando para os fundos do colégio, para a capela de Schoenstatt. Quando chegou lá dona Hercília quase desmaiou. Sentiu vertigem e, sem poder se conter, deu uma golfada de vômito. Lá estava Marilena abraçada com o filho do jardineiro Manassés. Dona Hercília cambaleou até os dois jovens sentados num dos bancos de fora da capela. Aproximou-se por trás e, sem qualquer aviso, desferiu uma violenta bofetada no rosto de Marilena, e gritou para o rapaz:
– Tire as mãos da minha filha, seu monstro!

Nervos

No dia seguinte o escândalo correu Londrina. O romance entre a filha do Dr. Silveira com o filho de um jardineiro negro era o assunto nas rodas sociais. Pais de famílias bem posicionadas achavam que o Dr. Silveira deveria processar o rapaz por sedução. Já as senhoras, mais práticas, organizaram uma romaria até o Shangri-lá a fim de dar apoio moral à dona Hercília que estava brigada com a filha, e tomando calmantes. Na sala, conversavam em voz baixa. Todas demonstravam indignação e estavam preocupadas com o que as pessoas de bem da cidade iriam pensar sobre o ocorrido. Porém, o que muitas senhoras queriam saber de dona Hercília, por curiosidade real ou por simples maldade humana, é se Marilena fizera o curso de noiva com vistas a casar-se com Josué. Dona Hercília, explodiu. Negou aos berros que sua filha jamais amou Josué, que isso seria uma união maldita, e que os dois não ficariam juntos nem por cima de seu cadáver.
As senhoras saíram de lá com um estoque de fofocas para gastar em seus cabeleireiros.

O Reverendo

O Dr. Silveira estava duplamente preocupado. Por causa dos nervos da esposa, e por causa dos sentimentos da filha. De fato, ela havia conversado bastante com Marilena e soube que a filha nutria sentimentos sinceros por Josué. Porém, o experiente pai sabia que aquele tipo de relacionamento não seria bem aceito pela comunidade, já que o racismo no Brasil é um fato concreto e motivo de muita hipocrisia. Uma terceira preocupação vinha se ajuntar às demais preocupações daquele pai. Dr. Silveira sabia apenas que Josué era filho de seo Manassés, jardineiro e mais nada. A angústia tomava conta do advogado, sentado sozinho em meio à enorme estante de livros de seu escritório no Edifício Autolon, naquele final de expediente de sexta-feira. Foi quando sua secretária anunciou que o reverendo Jonas Dias Martins estava ali querendo falar um minuto com o Dr. Silveira.
O Reverendo Jonas, pastor da Igreja Presbiteriana Independente, homem que também trazia na pele a herança africana, era um pastor altamente respeitado em Londrina. Dr. Silveira o recebeu com toda a reverência que um líder espiritual merecia. E o Reverendo Jonas, com humildade e compreensão, foi direto ao coração do problema:
– Dr. Silveira, tomei a liberdade de vir aqui para interceder em favor de Josué, o rapaz que está apaixonado por sua filha.
Dr. Silveira ficou desconcertado, mas por instinto de advogado resolveu calar-se e ouvir até o fim o que o pastor tinha a dizer.
– O Josué é de uma família humilde que freqüenta a nossa igreja, prosseguiu o Reverendo. – É um rapaz que ajuda o pai no serviço de jardinagem, mas também é muito estudioso, inclusive os estudos dele são pagos pelo médico Dr. Clímaco, que o senhor deve conhecer. Por isso, quero dizer que eu lhe dou minha palavra de que o senhor, a sua senhora e principalmente sua filha podem confiar em Josué da Silva, pois ele é um moço de caráter irrepreensível e, com certeza, a fará muito feliz.
Dr. Silveira não sabia o que falar. Agradeceu a preocupação do Reverendo Jonas e disse que iria meditar sobre o assunto com vistas à melhor solução do problema. O Reverendo o abençoou, despediu-se e partiu. Dr. Silveira ficou ali sentado ponderando durante horas e horas. Até que se levantou da cadeira e foi para casa.

Footing

O domingo londrinense amanheceu ensolarado com um céu de um cristal azul-turquesa. Após a missa na Matriz do Sagrado Coração de Jesus, toda a cidade circulava pela Avenida Paraná. Era o costume daqueles tempos. As moças e os rapazes faziam o chamado footing, um passeio pela Praça das Bandeiras, (atual Marechal Floriano) onde os jovens podiam se ver e as paqueras, namoros e noivados aconteciam, principalmente entre as moças e os rapazes das melhores famílias da sociedade londrinense. Naquela manhã de maio era possível ver casais de namorados manifestando seu afeto com recato e respeito. Tudo corria normalmente como sempre. Porém, sem que ninguém pudesse explicar, um casal diferente veio vindo pela calçada a partir da esquina da Avenida Paraná com São Paulo. Houve silêncio de susto. Eram nada mais nada menos do que Marilena e Josué, uma branca e um negro, de mãos dadas. Vinham felizes e orgulhosos de seu amor. Olhavam nos olhos de todos que os encaravam assombrados, mas os cumprimentavam com desembaraço e educação. E, à medida que caminhavam para a esquina da Avenida Rio de Janeiro, já ninguém mais achava estranho. Muitos faziam gestos de aprovação, alguns aplaudiam ao longe enquanto Marilena e Josué seguiam pela Rua Maranhão em direção ao Cine Ouro Verde.

Desfecho

Essa ousadia de Marilena teve conseqüências. Dona Hercília revoltou-se ao saber do acontecido, inda mais pela boca de suas muitas amigas. Não quis entender nada e pediu desquite do Dr. Silveira por ter dado apoio àquele romance “imoral” aos seus olhos, mas não sem antes bater o pé e mandar Marilena terminar o estudos em São Paulo. Essa separação decretou o doloroso fim daquele namoro.
Quanto a Josué, anos depois, ainda com auxílio financeiro do Dr. Clímaco, também foi estudar em São Paulo. Passou no vestibular para Direito no Largo de São Francisco, onde se formou com Láurea Acadêmica e foi orador da turma. Três anos antes da formatura, Josué e Marilena acabaram se reencontrando na faculdade de Direito. O amor os uniu novamente.
Depois que Marilena se formou, eles se casaram. O casal convidou então o Dr. Silveira, e os três abriram o escritório Silva & Silveira, e tornaram-se importantes e prósperos advogados em São Paulo.

(Publiquei este conto na Folha Norte no início de 2008)

9 Comentários:

Às 25 de abril de 2009 às 06:28 , Blogger Marcos Martins. disse...

adorei , adorei.bjs

 
Às 25 de abril de 2009 às 06:38 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

Pô, Marquinhos! Que legal que vc gostou! Fico superfeliz!Beijos.

 
Às 25 de abril de 2009 às 06:58 , Blogger Márcio Américo disse...

Cinematográfico!!!!

 
Às 25 de abril de 2009 às 07:10 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

Valeu, grande Márcio! Obrigado, cara!

 
Às 28 de abril de 2009 às 07:16 , Blogger Paulo de Moraes disse...

Grande história, Mau. beijo.

 
Às 28 de abril de 2009 às 07:17 , Blogger Paulo de Moraes disse...

Grande história, Mau. Beijo. Vamos estar aí no Filo 9 e 10 de junho. Nos falamos.

 
Às 28 de abril de 2009 às 08:05 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

Valeu aí, Paulo! Vamos tomar umas em breve!Beijo.

 
Às 4 de setembro de 2009 às 20:54 , Blogger P A R A L E LO disse...

Que riqueza de detalhes, viajei o tempo todo durante a leitura e olha que sou bastante crítico, pois escrevo também, mas o que li teve um toque diferente, demais mesmo.

 
Às 5 de setembro de 2009 às 10:57 , Blogger Maurício Arruda Mendonça disse...

Valeu aí, amigo. Conseguir deleitar um especialista é realmente muito difícil. Muito obrigado. Abraço. M.

 

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