A canção e a parteira japonesa
Hoje acordei com uma canção do meu amigo e irmão Bernardo Pellegrini na cabeça. “Te levo dentro de mim até um pedaço/um trecho/ depois eu me afasto/te vejo/Eu fico fora de mim...” Essa canção me trouxe o mesmo frescor e leveza dessa manhã azul de sábado e fiquei feliz. Então pensei muito em Bernardo, na sua paixão pela vida, nas tantas coisas lindas que ele compõe e escreve, e isso me fez lembrar um texto que ele escreveu e que me emocionou muito no ano passado. Na verdade o texto foi escrito em 1999 e é um relato sobre uma reportagem que Bernardo fez com a japonesa Maria Tan, uma das primeiras parteiras de Londrina. Moleque que pisou a terra vermelha, que viu muita coisa no “Hotel dos Viajantes”, Bernardo flagrou com sensibilidade uma personagem que fez a nossa diferença. Sim, muitos e muitos londrinenses vieram a luz por mãos do sol nascente. Eis aí, meus amigos, o texto em questão:
MARIA JAPONESA
MARIA JAPONESA
O sobrado respirava silenciosamente. Vinte anos atrás, a Belo Horizonte era uma rua tranqüila cheia de casas de madeira e jardins japoneses. Toquei a campainha incerto do que esperar daquele começo de tarde de trabalho preguiçoso. Sabia apenas o seu nome –
Maria Tan –, seu apelido – Maria Japonesa – e seu feito: 40 anos de trabalho como parteira, em que trouxera à vida pelo menos cinco mil londrinenses. Naquele tempo, nascer em maternidade era um luxo. E mais raro ainda eram as parteiras com algum tipo de formação médica.
Maria veio abrir a porta, sóbria com a decoração da casa espaçosa, que recendia a tinta fresca e madeira nova. Aposentada, viúva, os filhos formados (Joana parteira como ela; Toshihiko, dentista; Kooki, médico), só agora capitulava aos confortos da própria casa. Contando sua história, a luz de Maria jorrava sobre os pequenos gestos, pequenas interjeições. Desenhava com os dedos no tecido do vestido discreto que lhe cobria os joelhos, sentada como as mulheres de seu tempo. As pernas repousando na garupa de uma montaria imaginária.
Quando chegou a Londrina, nos anos 30, hospedou-se com o marido no único hotel que existia, a estalagem da Companhia de Terras. A cidade se resumia a alguns galpões de madeira, muita rua de poeira e lama, muito casal se mudando e, notou Maria, muita criança nascendo. A terra vermelha contraía, latejava. Trazia na bagagem a disposição de ajudar o marido e um diploma de enfermeira da universidade de Kobe. Não podia exercer a profissão, mas em poucos anos, porém, o seu nome já virara uma lenda, e seu ofício um amparo. Naqueles anos distantes da década de 40, Maria Japonesa, mal parava em casa.
Assombravam-lhe a memória os sobressaltos da profissão. Alta madrugada, um cavaleiro de capa negra, com dois animais encilhados debaixo da tempestade dizendo: “Vamos dona Maria, a criança tá pra nascer”. E ela ia. Eram dias de marcha até uma fazenda distante, onde uma mãe gemia e muitas velhas rezavam. Passava as vezes semanas fora, ao lado de gente que nunca havia visto antes e voltava sempre com uma galinha, um porquinho, um regalo.
As coisas estavam bem melhores nos anos 50. As ruas tinham asfalto, Maria tinha um jipe Willys e um emprego na Santa Casa, onde os médicos lhe reverenciavam. Depois, o nascimento virou indústria. Vieram a anestesiam, as cesáreas em série, a previdência, as maternidades. Quase ninguém mais nascia em casas quando Maria Tan foi cuidar das plantas no jardim do sobrado silencioso.
A reportagem que escrevi sobre nosso encontro saiu em matéria de página inteira na Folha de Londrina alguns dias depois e causou muito emoção em casa quando contei que, embora estivesse às portas de completar dez anos de reportagem, nunca antes me emocionara tanto entrevistando alguém. “Pudera!” – meu pai disse. “Foi a primeira pessoa que pôs as mãos em você.”
Enquanto eu nascia, Maria mandou que meu pai fosse à padaria buscar uma garrafa de cerveja. “Quando voltei você já tinha nascido.”
Maria mandou abrir a garrafa, deixou jorrar a espuma. Depois secou o copo, subiu no jipe e saiu para outra, outro parto. Eu nem sabia, mas foi o meu primeiro brinde e me emociona até hoje a forma que então a vida escolhia para nos dar a sua cara.
Era o ano mágico de 1958. Era um tempo em que futuros doutores e futuros ladrões, e futuros rufiões e futuras putas, e magnatas e pilantras e mecânicos e corretores de café, lavradores, pintores e encanadores, artistas, motoristas de táxi, e vagabundos, e os fracassados de todos os tipos e também os heróis e os miseráveis, todos, todos nós, nascíamos em nossas casas, rodeados de gente querida, pelas mãos de uma só pessoa.
Bernardo Pellegrini
7 de agosto de 1999.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial