PAIXÃO DE CARNAVAL
Quando os carnavais eram nos clubes, as marchinhas e os sambas contagiavam de alegria os jovens casais das famílias da alta sociedade londrinense. Mas como todo amor de carnaval é passageiro, sonhos e desilusões machucavam o coração dos foliões. Especialmente aqueles que não nasceram em berço de ouro.
Naquele sábado de carnaval, Zé Ricardo estava com o pé apoiado na parede de uma Lanchonete na esquina da Rua Sergipe com Hugo Cabral, trajando uma surrada fantasia de leão, depois de ter desfilado na escola de Samba Chão de Estrelas. Zé Ricardo parecia sereno tomando doses de gim sorvidas de uma mamadeira que trazia dependurada no pescoço, mas, por dentro, seu coração rugia de raiva por ser um durango e não ter um puto no bolso. Isso o impedia de se encontrar com Soninha, uma garota apaixonante, que costumava economizar grana para pular o carnaval no Canadá Country Club, que cobrava uma nota preta pelos convites. O que o dilacerava não era porque Soninha tinha namorado, mas o fato de ela ter prometido a Zé Ricardo que naquele carnaval ela ia ser só dele, e que os dois teriam sua grande noite de amor nos fundos do Canadá, mais precisamente do lado da piscina semi-olímpica. O samba, o gim, a ginga, o suor, a rua, a noite estrelada tudo contribuiu para que Zé Ricardo tomasse a decisão: “– Vou entrar no peito e na raça!”.
E lá foi Zé Ricardo fantasiado pela Rua Sergipe em direção à Avenida Juscelino Kubitschek onde seguiu reto até o clube. Descendo o declive da entrada do Canadá olhou para cima e viu no salão a noite carnavalesca em seu auge, brilhos esfuziantes, rapazes e garotas elegantemente fantasiados, o que contrastava com a sua pobre aparência de leão de circo. Indo rumo à portaria, Zé Ricardo furou fila, empurrou aqui e ali, desviou-se de um bloco de bebuns fantasiados de bebês, e foi peitar o porteiro. Já chegou fazendo cara de choro: “Olha, seu porteiro, meu pai acaba de ter um enfarte. Minha irmã tá aí dentro e preciso levar ela pra casa agora! Eu esqueci a carteirinha, me deixa entrar pelo amor de Deus!” O porteiro vacilou. Sabia que poderia ser lorota, mas deixou Zé Ricardo entrar: “–Vai que o safado é filho de algum milionário”, pensou.
Zé Ricardo entrou se sentindo 007 disfarçado de leão. Subiu a escadaria de acesso ao grande salão saltando de dois em dois degraus. Ney e seu Conjunto executavam marchinhas maviosas. No meio da imensa multidão não conseguia enxergar Soninha. Aliás, não conseguia entender porque a massa dos foliões rodava só em sentido anti-horário pelo salão. Foi numa dessas voltas que Zé Ricardo reconheceu Soninha. Vinha fantasiada de uma sensual ovelhinha, mas era enlaçada na cintura pelo braço cabeludo de um cara grandão vestido de pastor de rebanho, com barba postiça e cajado de isopor. Zé Ricardo piscou para Soninha, mas ela virou a cara. “Tá dando uma de fiel”, pensou Zé Ricardo, excitado com o jogo, pois dali a pouco estaria fazendo amor com aquela gatinha malandra.
Mas a hora foi passando e nada de Soninha se aproximar ou dar um sinal que fosse. Quando ela se encaminhou para o sanitário, Zé Ricardo a interceptou, segurando-a pelo braço. Soninha o repeliu com irritação: “– Tira a mão! A família do Marcos tá sentada naquela mesa ali, eles podem me ver com você!” Zé Ricardo cobrava de Soninha o cumprimento da promessa que ela mesma fizera a ele, mas a garota foi cruel: “Deus que me livre! Olha só pra tua fantasia! Detesto pobre! E tem mais, hoje eu fui pedida em casamento. Estou noiva, entende? Noiva de um milionário. Tchau, trouxa!” E saiu rebolando.
De volta ao salão, humilhado e ressentido, Zé Ricardo não teve dúvidas. Virou uma dose generosa de gim. Esperou que o casal chegasse bem perto de si. Quando ficou muito próximo de Marcos, Zé Ricardo agachou, passou a mão no chão e, num golpe veloz, entupiu a boca do pastor de confete. Em seguida catou o seu cajado e quebrou na cabeça de Marcos. O grandalhão engasgou feio. E enquanto familiares acudiam o recém-noivo, centenas de foliões assistiam estupefatos um leão agarrar uma ovelha e rasgar-lhe toda fantasia, até expor completamente toda a beleza de sua nudez.
Seguranças agarraram o leão e o tiraram do salão. Lá fora, entretanto, longe do olhar dos sócios, foram pra cima dele com violência, mas Zé Ricardo era bom de porrada e saiu no braço com quatro ao mesmo tempo. O leão ferido derrubou todos. Depois subiu a ladeira do Canadá limpando o sangue da cara na fantasia. Continuava fulo da vida por ter sido xingado de pobre, e já que era pobre mesmo, não queria nunca mais saber de clube de bacana, nem de transar com cocotinha. Decidido, tocou a pé pela Rua Canudos, pegou a Humaitá à esquerda, tomou pinga na Lanchonete Bolonhesa, cruzou a Higienópolis, e se mandou pro Moringão. Entrou no carnaval popular daquele ginásio de esportes e se sentiu em casa, aconchegado pela alegria carnavalesca verdadeira, a exaltação do desejo sem máscara dos pobres e dos feios como ele.
Quando Zé Ricardo deu por si, o dia raiava. Totalmente mamado, ele seguia dançando, chorando e cantando antigos sambas pela Rua da Lapa, abraçado a um belíssimo travesti.
Naquele sábado de carnaval, Zé Ricardo estava com o pé apoiado na parede de uma Lanchonete na esquina da Rua Sergipe com Hugo Cabral, trajando uma surrada fantasia de leão, depois de ter desfilado na escola de Samba Chão de Estrelas. Zé Ricardo parecia sereno tomando doses de gim sorvidas de uma mamadeira que trazia dependurada no pescoço, mas, por dentro, seu coração rugia de raiva por ser um durango e não ter um puto no bolso. Isso o impedia de se encontrar com Soninha, uma garota apaixonante, que costumava economizar grana para pular o carnaval no Canadá Country Club, que cobrava uma nota preta pelos convites. O que o dilacerava não era porque Soninha tinha namorado, mas o fato de ela ter prometido a Zé Ricardo que naquele carnaval ela ia ser só dele, e que os dois teriam sua grande noite de amor nos fundos do Canadá, mais precisamente do lado da piscina semi-olímpica. O samba, o gim, a ginga, o suor, a rua, a noite estrelada tudo contribuiu para que Zé Ricardo tomasse a decisão: “– Vou entrar no peito e na raça!”.
E lá foi Zé Ricardo fantasiado pela Rua Sergipe em direção à Avenida Juscelino Kubitschek onde seguiu reto até o clube. Descendo o declive da entrada do Canadá olhou para cima e viu no salão a noite carnavalesca em seu auge, brilhos esfuziantes, rapazes e garotas elegantemente fantasiados, o que contrastava com a sua pobre aparência de leão de circo. Indo rumo à portaria, Zé Ricardo furou fila, empurrou aqui e ali, desviou-se de um bloco de bebuns fantasiados de bebês, e foi peitar o porteiro. Já chegou fazendo cara de choro: “Olha, seu porteiro, meu pai acaba de ter um enfarte. Minha irmã tá aí dentro e preciso levar ela pra casa agora! Eu esqueci a carteirinha, me deixa entrar pelo amor de Deus!” O porteiro vacilou. Sabia que poderia ser lorota, mas deixou Zé Ricardo entrar: “–Vai que o safado é filho de algum milionário”, pensou.
Zé Ricardo entrou se sentindo 007 disfarçado de leão. Subiu a escadaria de acesso ao grande salão saltando de dois em dois degraus. Ney e seu Conjunto executavam marchinhas maviosas. No meio da imensa multidão não conseguia enxergar Soninha. Aliás, não conseguia entender porque a massa dos foliões rodava só em sentido anti-horário pelo salão. Foi numa dessas voltas que Zé Ricardo reconheceu Soninha. Vinha fantasiada de uma sensual ovelhinha, mas era enlaçada na cintura pelo braço cabeludo de um cara grandão vestido de pastor de rebanho, com barba postiça e cajado de isopor. Zé Ricardo piscou para Soninha, mas ela virou a cara. “Tá dando uma de fiel”, pensou Zé Ricardo, excitado com o jogo, pois dali a pouco estaria fazendo amor com aquela gatinha malandra.
Mas a hora foi passando e nada de Soninha se aproximar ou dar um sinal que fosse. Quando ela se encaminhou para o sanitário, Zé Ricardo a interceptou, segurando-a pelo braço. Soninha o repeliu com irritação: “– Tira a mão! A família do Marcos tá sentada naquela mesa ali, eles podem me ver com você!” Zé Ricardo cobrava de Soninha o cumprimento da promessa que ela mesma fizera a ele, mas a garota foi cruel: “Deus que me livre! Olha só pra tua fantasia! Detesto pobre! E tem mais, hoje eu fui pedida em casamento. Estou noiva, entende? Noiva de um milionário. Tchau, trouxa!” E saiu rebolando.
De volta ao salão, humilhado e ressentido, Zé Ricardo não teve dúvidas. Virou uma dose generosa de gim. Esperou que o casal chegasse bem perto de si. Quando ficou muito próximo de Marcos, Zé Ricardo agachou, passou a mão no chão e, num golpe veloz, entupiu a boca do pastor de confete. Em seguida catou o seu cajado e quebrou na cabeça de Marcos. O grandalhão engasgou feio. E enquanto familiares acudiam o recém-noivo, centenas de foliões assistiam estupefatos um leão agarrar uma ovelha e rasgar-lhe toda fantasia, até expor completamente toda a beleza de sua nudez.
Seguranças agarraram o leão e o tiraram do salão. Lá fora, entretanto, longe do olhar dos sócios, foram pra cima dele com violência, mas Zé Ricardo era bom de porrada e saiu no braço com quatro ao mesmo tempo. O leão ferido derrubou todos. Depois subiu a ladeira do Canadá limpando o sangue da cara na fantasia. Continuava fulo da vida por ter sido xingado de pobre, e já que era pobre mesmo, não queria nunca mais saber de clube de bacana, nem de transar com cocotinha. Decidido, tocou a pé pela Rua Canudos, pegou a Humaitá à esquerda, tomou pinga na Lanchonete Bolonhesa, cruzou a Higienópolis, e se mandou pro Moringão. Entrou no carnaval popular daquele ginásio de esportes e se sentiu em casa, aconchegado pela alegria carnavalesca verdadeira, a exaltação do desejo sem máscara dos pobres e dos feios como ele.
Quando Zé Ricardo deu por si, o dia raiava. Totalmente mamado, ele seguia dançando, chorando e cantando antigos sambas pela Rua da Lapa, abraçado a um belíssimo travesti.
(Foto do casal de Mestre-sala e Porta-bandeira do carnaval de rua londrinense extraída do livro "Presença Negra em Londrina" de Idalto José de Almeida)
8 Comentários:
Rua da Lapa?!! Morei lá. Que delícia de texto. Beijo procê. Sempre bom ler tuas aventuras histórico-fictícias. Beijos.
Poxa, Paulo! Rua da Lhapa?! Você morou em meia Londrina, hein? Legal que vc curtiu. Valheu!
Ah, o homem das narrativas deliciosas!
não tem como não parecer fazer parte dela, Mauricio.
Um beijO!
Valeu aí, Samantha! Você também tá escrevendo muita coisa linda!
Salve, Maurício. Como se a gente se esbarrasse em uma rua de Londrina e vc tivesse me dado um presente, fui procurar uma referência do Catatau na internet e acabei usando uma parte de um texto teu, tirado de um outro blog, explicando o livro, para a minha dissertação. Parabéns pelo lançamento de mais um livro, bem legais os contos do seu blog. Um abraço, Rubens.
Fala, Rubinho! Quanto tempo! Que legal esses encontros pela rede, bicho. E essa visita. Bacana a sintonia catatauesca entre nossos trabalhos. Viva o Leminski! Manda ver. Obrigado pelas palavras aí. Grande abraço procê.
Mauricio, moro no Rio de Janeiro. É possível adquirir seu livro "Londrinenses", sendo feita remessa para esse Estado?
Abraços e parabéns pelos textos.
Oi, Danilo! Sem problemas. Me manda só uma mensagem com teu endereço pra gente conversar sobre a remessa do livro, ok? Abraço.
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